Presente no Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo e com estreia marcada para 2 de agosto, “A Outra História do Mundo” é uma deliciosa fábula sobre a resistência à ditadura no Uruguai.
Desafiando os militares
O filme mostra como a ditadura cívico-militar afeta uma pequena cidade na fronteira do Uruguai com o Brasil. Tudo começa a partir do momento em que chega o coronel Valerio às vizinhanças de Gregorio Esnal e Milo Striga. Os dois amigos, revoltados com a restrição imposta pelo militar de obrigar os bares a fecharem às 22h, resolvem sequestrar alguns dos anões de jardim da casa de Valerio, exigindo o fim dessa medida. Porém, a letra de Milo na carta de resgate é reconhecida pelo carteiro Provisório, que atua como cagueta oficial do militar. Então, o que parecia uma brincadeira se torna tragédia. Milo é levado pelos militares e desaparece.
Depois de uma crise existencial pelo mal causado ao amigo, Esnal sai de seu exílio domiciliar e passa a apoiar as filhas de Esnal. Além disso, inicia uma resistência intelectual ao regime ditatorial através de suas aulas de História, que ele inventa para inserir a figura do amigo desaparecido nos eventos. Suas lições conquistam os alunos, mas, o coronel percebe a armação e manda prender Esnal. Desta vez, porém, a população local se juntará para impedir esse ato.
Ditadura no Uruguai
Em seu segundo longa-metragem de ficção, o diretor uruguaio Guillermo Casanova constrói uma parábola sobre o período em que o Uruguai viveu sob ditadura, entre os anos 1973 e 1985. Nesse sentido, a mudança do coronel Valerio para a casa da esquina na rua da família de Milo representa a instituição do militarismo. A princípio, parece inofensivo, mas que constitui uma ameaça grave aos que ousam enfrenta-la, como o desaparecimento de Milo mostra. Adicionalmente, a tentativa de Esmir, depois de seu exílio, é uma alusão aos pensadores que buscavam a resistência por meio da propagação de suas ideias. Ele adapta os fatos históricos para atingir seu objetivo, assim como os militares moldavam a História como lhes convinha.
A dura realidade, que parecia uma situação sem solução, obriga as pessoas a recorrer à fantasia, repetindo o que assistimos em “A Vida é Bela” (1997), de Roberto Benigni. Por isso, Esmir recorre ao jogo de luzes, em uma aula interrompida por um apagão, para levar os alunos a imaginarem a vida nas cavernas na pré-história. Da mesma forma, Esmir também usa a ilusão para consolar a filha adolescente de Milo, imaginando uma viagem dentro do caminhão quebrado do pai desaparecido.
Colaboracionistas
Além disso, “A Outra História do Mundo” abre espaço, também, para criticar os que ajudaram, ou não combateram, a ditadura. Nesse intuito, o personagem mais patético é o carteiro Provisório, que separava as cartas que considerava subversivas e as entregava para o coronel, sendo o pivô da prisão de Milo. O animal de estimação de Provisório é, sintomaticamente, um porco.
Igualmente, a esposa de Milo, quando este desaparece, prefere fugir da cidade, e evitar qualquer perigo, do que ajudar as filhas a lutarem para salvá-lo, numa atitude covarde. A imprensa, representada pela emissora de rádio local, corrobora a intervenção militar no início da ditadura, e quando esta cai, elogia a liberdade. Além disso, o locutor é quem encontra e entrega a carta que incrimina Milo do sequestro dos anões. Para o filme, a imprensa sempre se alia a quem está no poder, não importa quem seja.
Assim, Guillermo Casanova monta em “A Outra História do Mundo” um microcosmo do período de ditadura no Uruguai, num relato repleto de metáforas. Se, por um lado, elas constroem uma deliciosa fábula com personagens empáticos e situações emocionantes, por outro, abrandam demais o lado mais sombrio da ditadura. O filme de Roberto Benigni, por exemplo, não deixava de fora os horrores do nazismo, e mantinha um clima de terror sempre presente. Não tivesse o diretor utilizado tintas tão leves, o filme teria pintado o coronel com tons mais ameaçadores. Dessa forma, produziria momentos de suspense que adicionariam dramaticidade ao longa, com o perigo cada vez mais perto.
Anedota
Alternativamente, é possível também ler o filme como uma singela anedota. Sua ideia constituiria em se entender que um fato específico, como a libertação dos presos políticos nessa pequena cidade, tivesse desencadeado o fim da ditadura Uruguai. O que tem seu fundo de verdade. Afinal, se cada pequena província tem sua própria revolução, uma grande transformação poderá acontecer.
Enfim, seja qual for sua interpretação preferida, “A Outra História do Mundo” é uma dramédia (drama + comédia) que emociona. Contudo, que poderia impactar com mais força se expusesse os terrores desse regime antidemocrático.
Ficha técnica:
A Outra História do Mundo (Otra História del Mundo, 2017) Uruguai, 112 min. Dir: Guillermo Casanova. Rot: Guillermo Casanova, Inés Bortagaray. Elenco: Cesar Troncoso, Roberto Suarez, Natalia Mikeliunas, Alfonsina Carrolcio, Nestor Guzzini, Gustavo Perini, Cecilia Cosero, Jenny Goldstein, Christian Font, Claudio Jaborandy.