Talvez você reaja como a plateia francesa na época de lançamento de A Regra do Jogo, em 1939. Aquele público, incluindo a crítica, não apreciou a estranha mistura que o seu próprio diretor Jean Renoir viria a alcunhar de “drama alegre”. Tal estranheza é compreensível. Afinal, o tom do filme constitui o aspecto mais influente na primeira impressão do espectador.
E A Regra do Jogo apresenta tanto cenas de comédia burlesca como uma expressão do mal da sociedade da época. Por um lado, seus personagens correm uns atrás dos outros, como um típico filme dos Irmãos Marx. E, por outro, eles demonstram uma cruel frieza com o ser humano que culminaria no nazismo que estava ali batendo à porta.
Posteriormente apreciado
Porém, posteriormente, A Regra do Jogo seria elevada à condição de um dos melhores filmes da história. Em 2012, na votação dos críticos da revista Sight & Sound, ficou em 4º lugar numa dessas listas. Da mesma forma, o cineasta Woody Allen o incluiu como um dos seus doze filmes europeus favoritos, lista que continha também A Grande Ilusão, do mesmo Jean Renoir. (em: LAX, Eric. Conversas com Allen. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p.335).
François Truffaut escreveu que esta obra “(…) é o credo dos cinéfilos, o filme dos filmes, o mais detestado por ocasião do lançamento e em seguida o mais apreciado (…)”. E, acrescenta:
“No interior desse ‘drama alegre’, Renoir combina, sem dar esta impressão, uma massa de ideias gerais, de ideias particulares e expressa principalmente seu grande amor pelas mulheres. Juntamente com Cidadão Kane, A Regra do Jogo é certamente o filme que mais despertou vocações de cineastas (…)”. (em: TRUFFAUT, François. Os filmes da minha vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. 385 p. ISBN 791.43.015. págs. 63-64)
A trama
A estória acontece em 1939, na véspera da Segunda Guerra Mundial. O aristocrata Marquês Robert de la Cheyniest convida alguns amigos para passarem um fim de semana em sua bela casa de campo em Sologne. Entre eles, o piloto André Jurieux, que acaba de se tornar herói nacional ao cruzar o Oceano Atlântico sozinho em um avião. Acontece que ele é apaixonado pela esposa de Robert, Christine de la Cheyniest. E quem o convidou foi Octave, amigo de infância de Christine.
Da mesma forma, entre os empregados, similar conflito existe. A camareira de Christine, Lisette tem um marido que é empregado de Robert. No entanto, ela flerta com Octave e se deixa seduzir por um novo contratado da casa. Com isso, Renoir abrange sua visão a toda população francesa, e não apenas a uma ou outra classe.
Esse aparentemente leve cenário diverte com os flertes, os diálogos sagazes e as confusões de eventos. Contudo, ele descreve pessoas inconscientes do perigo que espreitava o mundo. Próximos ao turbilhão, brincam com jogos de sedução e prazeres fúteis, que incluem debochar dos judeus – em conversas e na encenação musical durante a festa.
Mas, a guerra se aproximava. E os tempos mais severos ganham um simbolismo premonitório na atitude dos convidados que caçam coelhos e faisões impiedosamente. Bem como na peça com atores fantasiados de esqueletos, ou de morte, assustando a sua plateia.
Insensibilidade
Por fim, a conclusão do filme revela a insensibilidade de todos os personagens, sejam aristocratas ou seus empregados. Diante do assassinato de um dos convidados, todos preferem seguir a sugestão do Marquês de la Cheyniest, e consideram que a morte foi um acidente. Dessa forma, seguindo as regras, todos podem continuar com o jogo. Renoir expressava nesse filme sua leitura dessa época, prevendo as nefastas consequências dos anos seguintes.
De fato, o próprio Jean Renoir disse:
“Quando fiz A Regra do Jogo, eu sabia aonde ir. Conhecia o mal que roía meus contemporâneos. Meu instinto me guiava, a consciência do perigo me fornecia as situações e as réplicas.” (em: BAZIN, André. O realismo impossível. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016. 978-85-8217-854-6. pág. 99).
Similarmente, o crítico André Bazin considera o filme: “A expressão, através de uma história e de personagens, de uma civilização refinada, inconsciente e decadente.” E, acrescenta que se trata da “mais lúcida expressão de uma época condenada.”
Quanto ao estilo de direção, Jean Renoir está consciente de que lida com uma quantidade grande de personagens. Nesse sentido, utiliza a profundidade de campo, que logo mais seria exaltada em Cidadão Kane (1941), para mostrar as ações de todos eles, quando estão juntos na mesma cena. Por isso, podemos ver o que acontece no plano mais próximo, mas também o que se passa lá no fundo do quadro. Por exemplo, enquanto a camareira Lisette troca carícias furtivas com o novo amante, vemos seu marido se aproximar por trás da janela de vidro.
Além disso, Renoir movimenta muito a câmera. Suavemente, faz o quadro transitar entre os personagens. Assim, não permite que os diálogos espirituosos tornem o filme um teatro filmado. A Regra do Jogo, essencialmente, é visual.
Elenco
O próprio Jean Renoir interpreta Octave, que é o mais presente no filme. É ele que serve de ligação entre as situações e os personagens. Amigo de infância de Christine, ele se declara um parasita, pois não faz nada de importante, e se aproveita das migalhas dos amigos ricos.
Já Christine é uma austríaca filha de um nobre, que foge para a França. Lá, se casa com o marquês, pois este pode lhe dar a vida de luxo ao qual está acostumada. Mas, está aberta a outros relacionamentos, tal qual faz o seu marido. A atriz que a interpreta possui uma vida pessoal muito semelhante à da sua personagem. Nora Gregor também é austríaca, casada com um príncipe austríaco que se opõe à anexação da Áustria e que se refugia na França. Após A Regra do Jogo, Nora Gregor fez apenas mais um filme, vindo a se suicidar em Viña del Mar, no Chile, em 1949.
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Ficha técnica:
A Regra do Jogo (La règle du jeu) 1939. França. 106 min. Direção: Jean Renoir. Roteiro: Jean Renoir, Carl Koch. Elenco: Marcel Dalio, Nora Gregor, Paulette Dubost, Roland Toutain, Julien Carette, Gaston Modot, Jean Renoir, Pierre Magnier.
