Afire indica que Christian Petzold continua autoral, mas sem insistir nas mesmas características. Seu cinema se adapta, por isso faz sentido ele reunir alguns de seus filmes em trilogias temáticas (“Fantasmas” e “Amor em tempos de sistemas opressivos”). Uma prova evidente de sua capacidade, ou melhor, vontade, de se adaptar, é a adoção de uma nova musa, Paula Beer (em sua terceira colaboração com o diretor), substituindo a Nina Hoss.
Mas um tema continua recorrente em Afire, a desconfiança nas pessoas. Em muitos de seus filmes (especialmente em Barbara [2012]), esse sentimento se origina na divisão da Alemanha entre Ocidental e Oriental, durante a Guerra Fria. Desta vez, essa fonte só aparece em uma fala de um dos protagonistas, embora seja possível metaforizar a situação da trama em direção à Alemanha dividida. De fato, neste filme a desconfiança vem de dentro do personagem Leon (Thomas Schubert), revelando que Petzold aqui trabalha numa chave mais individualizada, para assim chegar à universalidade.
A trama
Leon viaja com seu amigo Felix (Langston Uibel) para a casa do pai deste numa pequena cidade litorânea. O plano de Leon é se isolar nesse local afastado para terminar o livro que está escrevendo. Porém, logo ele percebe que isso não vai dar certo. Primeiro, porque a casa foi emprestada para Nadja (Paula Beer), o que já incomoda Leon. Para piorar, ela recebe visitas noturnas de um amante, Devid (Enno Trebs), e fazem muito barulho enquanto transam. Mas a gota d’água que faz transbordar a irritação de Leon surge quando Felix e Devid se tornam namorados.
À parte a necessidade de Leon terminar o seu livro, que se torna também uma desculpa para não interagir com essas outras pessoas, vislumbra-se um ciúme infantil dele tanto por causa do amigo como por conta da mulher que ele acaba de conhecer. Por isso, desconfia dessas pessoas, e prefere se afastar delas. E Petzold, como costuma fazer, justifica essa desconfiança, pois os dois rapazes realmente começam um relacionamento e a moça não é apenas uma vendedora de sorvetes (ocupação que causa certo desprezo por parte de Leon).
Os mitos
Cristian Petzold também repete o cruzamento com os mitos, como fez em Fênix (2014) e Undine (2020), mas aqui resgatado do poema “Der Asra”, de Heinrich Heine (1797-1856), que fala sobre uma tribo que morre quando ama. Ao recitar esse trecho do poema, Nadja lança um olhar diretamente para o incomodado Leon. Ela aponta, assim, o problema crucial de Leon, sua incapacidade de amar que bloqueia sua escrita e o afasta das pessoas.
Então, sabendo disso, Nadja até tenta uma aproximação com Leon. O relacionamento progride timidamente. No entanto, quando esse homem demonstra indiferença diante da morte das pessoas, ela desiste dele. E faz isso desaparecendo sem se despedir, como os fantasmas da trilogia de Petzold. Da mesma forma, ela reaparece tempos depois, numa troca de olhares que termina o filme com perspectiva otimista, como no último filme de Petzold, Undine, confirmando assim uma mudança essencial na visão do diretor. Aliás, nessa cena Nadja encontra a esperança de uma transformação de Leon no fato de ele visitar o editor que está doente, prova de que ele se libertou de sua falta de compaixão pelo próximo. Leon poderá, assim, deixar de ser um zero na vida das pessoas que cruzam o seu caminho.
A paisagem litorânea de Afire lembra a de Jericó (2008), tal como o elemento água remete a Undine. No entanto, ao contrário do que acontece nesses filmes, aqui a praia e a água simbolizam a vida. Por isso, enquanto Felix, Nadja e Devid vão sempre se banhar no mar, Leon fica na casa (e quando vai à praia, fica só na areia, com calça e blusa). A morte, por sua vez, ganha representação no fogo, nos incêndios que se alastram pelas florestas.
A riqueza de Petzold
Por fim, suspeitamos de uma intenção humorística, devidamente contida, de Petzold, em relação a clichês do terror. À primeira vista, poderia ser um novo flerte com o cinema de gênero, como fez com o film noir em Jericó. Entre as pistas falsas, estão os dois amigos numa estrada deserta que resolvem pegar um atalho pela mata depois que o carro enguiça. Então, Felix parte sozinho e deixa Leon esperando. Estranhos barulhos na mata e um som de avião preparam um clima de suspense. Mas, depois tudo se resolve e tem suas devidas explicações. Porém, a intenção desse humor de referência retorna nas cenas em que Leon, com bloqueio criativo na sua atividade de escritor, brinca de atirar a bola na parede – como o Jack Torrance, personagem de Jack Nicholson em O Iluminado (1980), de Stanley Kubrick.
Enfim, Afire traz o cinema autoral, que não é estático e se mostra em constante transformação. Neste e no anterior, com uma conclusão otimista, e num processo de distanciamento das repercussões da divisão da Alemanha, embora ainda presente. E sempre num melodrama aparentemente enxuto, mas rico em sua profundidade.
___________________________________________
Ficha técnica:
Afire | Roter Himmel | 2023 | 103 min | Alemanha | Direção e roteiro: Christian Petzold | Elenco: Thomas Schubert, Paula Beer, Langston Uibel, Enno Trebs, Matthias Brandt.
Distribuição: Imovision.
Obs: o filme está na programação da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
Assista ao trailer aqui.