Aguirre, a Cólera dos Deuses (1972) é um filme de começos. O primeiro da turbulenta e frutífera parceria entre Werner Herzog e Klaus Kinski – colaboração essa que é tema do documentário Meu Melhor Inimigo (1999), que apesar de pouco inspirado, é persuasivo em algumas passagens. Além disso, é também o primeiro a tratar de temas recorrentes ao cinema do diretor: o homem contra a natureza (O Homem Urso, 2005), a desmesurada ambição humana (Fitzcarraldo, 1982). Aguirre, a Cólera dos Deuses foi, segundo o próprio Herzog, o filme que o lança no cenário internacional de cinema, apesar de ser seu quinto longa-metragem.
O Primeiro Impacto
Tenho como hábito sublinhar a forma como o diretor começa a apresentar a diegese (o mundo em que a história se passa). Isto é, através da primeira sequência, da primeira cena, e em ocorrências especiais – como é o caso – dos primeiros planos.
O filme começa com um texto explicando o que estamos prestes a acompanhar. No século 16, alguns exploradores espanhóis vêm à Amazônia peruana em busca da cidade perdida de Eldorado. Liderados pelo nobre Pedro de Ursua, os integrantes partem para sua aventura. O único documento que resta da expedição desaparecida é o diário do frei Gaspar de Carvajal, no qual a história é inspirada.
O longa se inicia, agora em seu primeiro plano de fato, com uma câmera super aberta, filmando uma montanha peruana tomada por névoa. Temos um zoom-in, e em meio àquela imensidão pedregosa e úmida, tomam forma pequenas figuras humanas, descendo os desfiladeiros dos Andes; enunciação imagética que demonstra a insignificância humana perante a natureza.
Corta para o plano seguinte, onde vemos algo caindo. Na queda, percebe-se ser uma gaiola com uma galinha dentro. Esse primeiro impacto com o longa é também o primeiro impacto (literal) com o chão, com a morte, com o perigo que os personagens (e os atores, como retomarei no desenvolvimento da crítica) estão enfrentando. Entre prisioneiros, nobres, soldados e (muitos) animais, vemos pela primeira vez nosso protagonista, Aguirre.
Névoa e Fumaça
Na conclusão dessa sequência inicial que une beleza orgânica (montanha) com encenação (figurinos) e artifícios específicos ao cinema (zoom e movimentação de câmera), surge um plano um tanto quanto metafórico.
Um canhão cai em meio às árvores e explode. Herzog mostra, em um contra-plongée, o céu, as árvores, e a fumaça gerada pela explosão. Claro que é algo que remete ao primeiro plano do filme, quando vemos névoa e a montanha. Dessa forma, cria-se uma associação de planos sofisticada, feita não por montagem paralela, mas pela evocação da memória (de certa forma aduzindo a Münsterberg aqui).
Na tomada que abre o longa, nossa perspectiva é de cima, num extremo plano geral onde a visão é quase divina. Já na que fecha a sequência, estamos com os pés no chão, apequenados pelo redor, olhando literalmente de baixo para cima. Essa nada mais é do que uma forma refinada de novamente reduzir o humano em relação à selva.
Natureza Selvagem, Ambição Humana
Se já apontei a presença desses temas no cinema de Herzog, é apropriado mencionar que essas temáticas parecem constantemente se aglutinar, e aqui não é diferente. Se já deixamos estabelecido que o diretor quer mostrar a irrelevância do ser humano perante o mundo selvagem, em Aguirre, a Cólera dos Deuses ele acaba (como em Fitzcarraldo e O Homem Urso) unindo os dois temas para assim construir seu discurso. Aqui, o humano, mesmo tão pequeno, criatura tão módica, deslumbrada por sua própria pertinência, acaba se achando não só maior que o que o circunda, mas melhor que os que os cercam.
O personagem de Kinski está disposto a aterrorizar (e não só isso) para assumir o comando. Para Herzog, claramente trata-se de uma ganância vazia, seca, enxuta, criando uma antítese, uma disputa, com a selva úmida em que está. Parece que, além de apenas locação, a Amazônia é personagem.
A representação e a câmera de Herzog
Aliás, muito se compara esse filme com Apocalypse Now (1979), por conta dos inacreditáveis bastidores. Porém, acho que outro do alemão toma o cargo de longa-metragem com mais incidentes absurdos. Refiro-me a Fitzcarraldo (1982), que, assim como o filme de Coppola, gerou um documentário contando sobre a produção: O Peso dos Sonhos (1982). Apesar de não ser tão apocalíptico quanto o filme de 1982, Aguirre, a Cólera dos Deuses, tem diversos problemas gerados por uma escolha expressiva que acredito ter sido definidora, não só para esta película, mas para a carreira do diretor como um todo: gravar em locação.
O realismo que essa decisão alcança é invejável ao melhor documentarista. Realismo esse reforçado por seu trabalho de câmera e seu eventual desapego com o efeito de transparência da tela. Por exemplo, em alguns momentos a lente fica suja, com gotículas de água. São coisas que acabam lembrando que estamos vendo um filme, mas que potencializam as cenas de forma imensurável. A câmera parece estar sendo fagocitada pelo meio. De fato, aqui a natureza não é só maior que os personagens representados, é maior que a ilusão da representação.
Texto escrito pelo crítico e universitário de cinema Enrico Mancini, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
Aguirre, a Cólera dos Deuses | Aguirre, der Zorn Gottes | 1972 | Alemanha Ocidental | 95 min | Direção e roteiro: Werner Herzog | Elenco: Klaus Kinski, Ruy Guerra, Helena Rojo, Del Negro, Peter Berling, Cecilia Rivera, Daniel Ades.