A atriz Paola Cortellesi estreia na direção de longas com Ainda Temos o Amanhã, fazendo escolhas ousadas.
A trama acontece no pós-guerra na Itália. Derrotado no conflito mundial, o país é forçado a aceitar a ocupação estadunidense em seu território. Esse cenário de humilhação parece potencializar o tradicional patriarcalismo a níveis brutais. Assim, com a desculpa de sofrer um nervosismo descontrolado causado pela participação em duas guerras, Ivano (Valerio Mastandrea) agride habitualmente sua esposa Delia (vivida pela própria Paola Cortellesi). Na verdade, esse machismo tóxico passa de geração a geração, como mostra o comportamento do pai de Ivano, que também mora na casa, e dos dois filhos malcomportados de Delia. Mas, Ivano extrapola, e até o pai o repreende.
O filme se concentra em Delia que, além de cuidar da casa como uma serva, ainda faz outros trabalhos para trazer o sustento para casa. Quanto ao marido, nem se menciona a sua ocupação. As amigas de Delia comentam com ela que ela se casou mal. Poderia, de fato, ter escolhido outro pretendente, que continua apaixonado por ela. Marcella (Romana Maggiora Vergano), sua filha que está prestes a ficar noiva, insiste para que ela não aceite essa situação. No final, ela toma uma posição corajosa, uma surpresa do enredo que universaliza a luta de Delia com a de todas as mulheres italianas da época.
Ousadia na forma
O tema de Ainda Temos o Amanhã poderia render um filme do neorrealismo italiano, tirando o desfecho esperançoso. Porém, na forma, a diretora Paola Cortellesi se afasta radicalmente desse movimento. Seu formato de tela 1.85 : 1 é um pouco mais retangular que o usado nos anos 1940; e o seu preto e branco traz um leve tom de cores esmaecidas. Mas, não é só isso. Após o primeiro tapa de Ivano em Delia, impactante porque desta vez sem filtros, entra uma montagem rápida, com planos diversos, como que o filme exprimisse sua consciência de que esse tipo de violência não é mais aceito hoje.
E a ousadia na forma vai além. Nos créditos iniciais, a câmera acompanha a protagonista saindo de casa e caminhando pelas ruas em câmera lenta, com uma música altiva, quase um caminhar da quadrilha de Cães de Aluguel (Reservoir Dogs, 1992). Faz sentido, pois, fora de casa, Delia é uma guerreira, tal como prova a sequência da sua rotina diária, de um trabalho a outro. No entanto, dentro de casa, ela é submissa ao marido, e dança conforme a música dele, o que fica explícito no trecho musical em que ela leva uma surra. Sem dúvida, é o momento mais polêmico de Ainda Temos o Amanhã, pois alguns podem erroneamente entender como uma banalização da violência doméstica.
Mulheres em luta por um futuro melhor
No contexto do filme, essa acusação não faz sentido. Afinal, toda a história enaltece a luta pela emancipação da mulher, numa época ainda sombria para as mulheres. A ousadia de surpreender com outro gênero, afinal, acontece também quando a câmera gira ao redor de Delia e sua paixão de juventude, e o humor por causa dos dentes sujos de chocolate abafa o tom romântico.
Para Delia, há pouca esperança de mudar sua realidade. Isso fica evidente porque, na única oportunidade que surge, tudo conspira contra ela. Resta a ela, então, como diz o título, lutar pelo amanhã. E faz isso evitando a todo custo, numa solução meio fantasiosa, que sua filha tenha o mesmo destino que ela casando-se com o homem errado. E ainda vai além, na surpresa da conclusão, quando o cenário insuportável culmina numa grande conquista para as mulheres, com direito a uma bela sequência de muito suspense.
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Ficha técnica:
Ainda Temos o Amanhã | C’è Ancora Domani | 2023 | Itália | 118 min | Direção: Paola Cortellesi | Roteiro: Furio Andreotti, Giulia Calenda, Paola Cortellesi | Elenco: Paola Cortellesi, Valerio Mastandrea, Romana Maggiora Romano, Emanuela Fanelli, Giorgio Colangeli, Vinicio Marchioni, Francesco Centorame.
Distribuição: Pandora Filmes.
Assista ao trailer aqui.