Se o filme As Duas Irenes fizesse parte do universo geek, se encaixaria no tema da moda, o multiverso. Mas, embora pareça fantástica, sua trama se inspira na história da família do seu diretor, o goiano Fabio Meira. O avô dele tinha, às escondidas, duas filhas com o mesmo nome, uma da esposa e outra fora do casamento. Ao adaptar esse fato curioso para seu primeiro longa para o cinema, o também roteirista criou duas Irenes com 13 anos, filhas do mesmo pai, mas com personalidades diferentes. E a protagonista, vivida por Priscila Bittencourt, vê na outra Irene (Isabela Torres), a materialização de quem ela gostaria de ser. Ou seja, uma adolescente mais despojada, mais avançada nas experiências com garotos. Fisicamente, as duas são muito diferentes também, pois puxaram as suas respectivas mães – e a outra Irene já tem o corpo mais desenvolvido.
Irene encontra Irene
No início, a Irene principal se aproxima da sua meia-irmã sem se revelar quem é. Conhece a mãe dela, Neusa (Inês Peixoto), costureira que acredita que o marido não está muito presente porque sempre precisa viajar a trabalho. Neusa é sempre muito simpática com essa nova amiga da filha, mas a menina geralmente lhe responde com certa grosseria, que reflete o seu incômodo e até revolta com essa situação.
No entanto, essa Irene não quer revelar o segredo para a sua mãe Mirinha (Susana Ribeiro), pois sabe que isso causaria um caos na família. Seu receio não vem apenas dos conselhos da empregada Madalena (Teuda Bara), mas principalmente porque ela gosta muito do pai. É com ele que ela se dá melhor na casa, porque a mãe parece só paparicar a filha mais velha, que se prepara para sua festa de debutante. Sobra para Irene as muitas implicações, em especial quanto a se vestir de forma comportada.
Então, Irene encontra na outra Irene, e não em casa, a irmã que vai lhe ensinar os caminhos da malícia. O filme desloca sua narrativa também para essas primeiras descobertas da protagonista, que se encanta com essa possibilidade de ser mais livre. Há espaço, inclusive, para a primeira desilusão amorosa da outra Irene, num dos poucos momentos em que a sua perspectiva ganha as telas. Isso acontece, também, na parte final, que revela duas grandes surpresas.
A música e o som
As Duas Irenes foi filmado em Pirenópolis, pequena cidade no interior de Goiás. As locações trazem muito naturalismo para a obra, incluindo uma caracterização de época que parece nem demandar grandes esforços. Não sabemos exatamente quando se passa a história, mas deve ser nos anos 1960, visto que a música mais recente da trilha é “Banho de Lua”, que Celly Campelo lançou no início dessa década. Ainda em relação à trilha musical, vale destacar que Neusa costuma ouvir antigas canções românticas brasileiras, caracterizando, assim, sua constante solidão de ter um marido ausente.
O som possui importância crucial para esse filme. Desde o início, os barulhos constroem o ambiente que ajuda a construir a personagem principal. Os sons de pássaros, de conversas constantes e até de brigas dos pais, revelam como é a sua vida. Bem diferente, aliás, da casa da outra Irene, que vive sozinha com a mãe, e ela sempre ouve canções antigas. Nesse aspecto, o cineasta Fabio Meira realiza um filme verdadeiramente cinematográfico, pois economiza nos diálogos (o que até ajuda porque alguns deles, em especial quando Irene está na casa da outra Irene, carregam certo artificialismo). Os momentos mais significativos são revelados através das imagens. Por exemplo, a raiva inicial de Irene que joga uma pedra na janela da casa da outra Irene – e que fecha essa representação com a outra Irene com uma pedra na mão na parte final.
O silêncio
O barulho do vento balançando as folhas das árvores também ganha uma imagem que vemos no início e no final do filme. Parecem simbolizar o segredo que se mantém apenas nesses murmúrios, sem descer para a boca das personagens principais. Mas é justamente no silêncio que o longa demonstra sua força. Conecta-se intimamente com a personalidade da protagonista, sempre quieta, revelando o que pensa apenas através de suas expressões (num excelente trabalho da jovem atriz Priscilla Bittencourt). E é dessa forma silenciosa que Fabio Meira revela o planejamento das duas Irenes (sentadas no alto de uma montanha, sem que o espectador perceba que elas conversam), que leva à conclusão inesperada e genial.
Após abordar a adolescência com essa enorme sensibilidade, Fabio Meira retrataria a velhice no seu filme seguinte, Tia Virgínia (2023).
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Ficha técnica:
As Duas Irenes | 2017 | Brasil | 89 min. | Direção e roteiro: Fabio Meira | Elenco: Priscila Bittencourt, Isabela Torres, Marco Ricca, Susana Ribeiro, Inês Peixoto, Teuda Bara, Ana Reston.
Distribuição: Vitrine Filmes.
Assista ao trailer aqui.