Talvez eu seja o último, ou um dos últimos dos críticos que se importam com isso, mas há qualquer coisa de estranha com As Oito Montanhas, filme italiano de Felix van Groeningen, codirigido por Charlotte Vandermeersch, algo que diz respeito à adequação do espaço.
Porque a janela de projeção menos retangular, quase quadrada, do 1.33:1 faz moicanos como eu esperarem um telefilme dos anos 1980 ou, no caso de um filme atual, um tempo mais austero, de clima mais invernal (o que até encontramos, mas atenuado de alguma forma pela leveza do relato), uma mise-em-scène mais rigorosa, uma versão moderna de A Árvore dos Tamancos (1978), a obra-prima de Ermanno Olmi. O que quer que torne o filme mais condizente com essa escolha.
Claro, o filme é o que é, embora esta seja uma sentença de quem está disposto a defender todo e qualquer filme, que se valeria unicamente pela proposta, e outras bobagens. E essa impressão de estranheza dura até certo tempo, dependendo do costume do espectador em ver filmes italianos, cinema contemporâneo ou um tipo de proposta menos comercial. Passada meia hora, já é possível se habituar com os enquadramentos que não valorizam tanto a paisagem montanhosa como as pessoas, com a trilha recheada por canções pop em inglês e com a ideia de que um dos diretores é o mesmo de Alabama Monroe e Querido Menino, este último sendo muito mais distante do universo retratado aqui.
Nos acostumamos a tudo isso, mas resta ainda algumas perguntas: qual é o sentido desse filme? O que levou os diretores a ele e a essas opções estéticas? Por que Pietro nos interessaria minimamente a ponto de nos dedicarmos a ver um filme de duas horas e meia com ele? Por que tantas contradições: paisagem vs enquadramento mais verticalizado, civilização vs natureza selvagem, misantropia vs errância?
Acompanhamos esse misterioso Pietro (Luca Marinelli, protagonista de Martin Eden, com o qual este filme tem poucas semelhanças), desde que era um menino mal-educado que passava as férias com os pais numa zona rural e montanhosa. Já adulto, Pietro reencontra o amigo de infância Bruno (Alessandro Borghi), com quem subia as montanhas acompanhados do pai, e com ele ergue uma casa perdida nas montanhas.
Alguém que sai da cidade e vai morar numa montanha é capaz de tudo, e na segunda metade, vemos um novo Pietro, embora o novo esteja mais na cabeça dele do que em sua aparência ou em seus gestos. Ele procura conhecer o mundo, na forma de outras montanhas. Esse desejo pela errância já era sensível mesmo quando ele era um menino grosseiro.
Pietro vai ao Himalaia, e lá aprende a visão de um mundo dividido entre oito montanhas e oito mares, com um grande monte, o Sumeru. Há aquele que aprende sobre a vida e o mundo conhecendo as oito montanhas e os oito mares e aquele que aprende vivendo o tempo todo no Monte Sumeru. Pietro é o homem do mundo, Bruno, o da montanha. Pietro é das oito montanhas, Bruno, do Monte Sumeru.
Em seu blog, José Geraldo Couto, num texto que dá vontade de retomar o filme em seguida, foi um dos poucos críticos que destacaram a janela de projeção e um dos muitos que cometem o erro de falar em “queda no melodrama”. Mas fez uma associação pertinente entre As Oito Montanhas e Dersu Uzala (1975), de Akira Kurosawa, em que Bruno seria Dersu, Pietro o capitão. A história de amizade é semelhante, e nos dois filmes trata-se de homens que não conseguem agir contrariamente à sua natureza, e por esse motivo enfrentam maiores obstáculos. Bruno, obviamente, sofre mais, até mesmo com a incompreensão daqueles que o amam. Para Pietro, a montanha é uma passagem, não uma vida.
Às perguntas feitas mais acima neste texto, não encontraremos respostas precisas. Mas fica evidente que a questão de Pietro é entender o seu amigo Bruno, suas opções e teimosias. Quando Bruno fala que a montanha nunca o tratou mal, entendemos sua insegurança, a misantropia que ele revela não no trato com as outras pessoas, mas em sua essência mesmo, nas opções que tomou na vida.
As Oito Montanhas é um filme mais convencional do que seu formato de tela, o tema e o cenário montanhoso poderiam dar a entender. Mas consegue criar algumas quebras de expectativa que o tornam mais interessante.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
As Oito Montanhas | Le Otto Montagne | 2022 | 147 min. | Itália | Direção e roteiro: Felix van Groeningen, Charlotte Vandermeersch | Elenco: Alessandro Borghi, Luca Marinelli, Filippo Timi, Elena Lietti, Chiara Jorrioz, Gualtiero Burzi.
Distribuição: Imovision.
Trailer aqui.