Cineasta do artificialismo, Wes Anderson se confirma, com Asteroid City, o Karel Zeman de seu país e de sua geração. Entendo que esse tipo de afirmação pode atrair a seguinte resposta: “cada época e cada país tem o Karel Zeman que merece”, pois o cineasta da antiga Checoslováquia estava muito próximo da genialidade na junção de animação com live action, sobretudo em um filme como O Barão Aventureiro (1962) e Wes Anderson, por melhor que seja, ainda tem (ou tinha) como melhores filmes Três é Demais (Rushmore, 1998) e Os Excêntricos Tenenbaums (The Royal Tenenbaums, 2001), segundo e terceiro longas que realizou, quando a referência do cartoon ainda não estava tão evidente.
Enquanto Zeman adornava seus quadros com traços finos, criando um efeito geométrico muito forte em suas composições visuais, Anderson brinca com as cores num efeito mata-borrão que vem sendo burilado desde Moonrise Kingdom (2012), causando estranhamento em quem se acostumou a considerar a combinação de laranja e azul em suas variações, frequente em Hollywood, como realista.
A principal referência dos últimos filmes de Wes Anderson é o cartoon do Papa-Léguas, referência que aqui é explicitada logo no começo, com uma pequena ave computadorizada fazendo um mirrado beep-beep antes de atravessar o quadro (ela voltará outras vezes durante o filme). O personagem do pássaro apelidado de Papa-Léguas (no original, Road Runner) nasceu em 1949, por criação do gênio do cartoon Chuck Jones. O sucesso foi tanto que Jones se sentiu na obrigação de criar um segundo desenho com o personagem em 1952, e logo as aventuras desse pássaro se transformariam em um seriado muito famoso nos anos 1960 e 70, também no Brasil.
Os anos 1950
Asteroid City é ambientado em 1955. Oportunidade de Anderson colocar todo o seu referencial da década que ele não viveu (nasceu em 1969), mas que parece amar. Temos então experimentos com a bomba atômica, o macartismo e sua caça às bruxas, popularização da televisão, influência da ficção científica na cultura norte-americana, crescimento do consumismo constitutivo da economia do país, lanchonetes com enormes balcões.
Filme sobre o ato de representar, mas também, e de forma subordinada à investigação da representação, sobre a ideia de simulacro de diversas coisas: de uma cidade, de um cenário, de uma encenação, de uma fantasia, de um hotel, de uma escola e do próprio ato de criar uma obra de arte. Wes Anderson reimagina os anos 1950 pela ótica do cartoon e conta com um elenco invejável, mesmo que alguns deles durem muito pouco na tela: Tom Hanks, Scarlett Johansson, Matt Dillon, Bryan Cranston, Adrien Brody, Tilda Swinton, Jeffrey Wright, Steve Carell, Hope Davis, Liev Schrieber, Edward Norton, Willem Dafoe, Jeff Goldblum (visto de relance numa cena de bastidores), Margot Robbie, além dos músicos Seu Jorge, Jarvis Cocker, e de Jason Schwartzman, o ator mais frequente na obra do diretor.
O mundo andersoniano
Todos esses atores e atrizes se submetem de alguma maneira ao estilo do cineasta, ajudando a compor o seu mundo e contribuindo, ao mesmo tempo, para a densidade dramática que por vezes se sobressai. Na peça, temos um fotógrafo que viaja com seu filho adolescente e suas três filhas pequenas (que se consideram bruxas, entre outras coisas espirituosas). Esse fotógrafo, ou melhor, o ator que o interpreta (Schwartzmann), é tido como personagem perfeito pelo próprio criador, numa referência ao ator mais andersoniano do elenco. Uma atriz de cinema e sua filha adolescente. Uma professora que excursiona com sua classe. Um cantor country meio abelhudo, um general de cinco estrelas, uma cientista, mais um monte de gente que está ali sem que saibamos exatamente o que fazem a não ser preencher o lugar com suas esquisitices.
Asteroid city, a pequena cidade fictícia para a qual todos vão, acidentalmente ou convidados, para testemunhar um experimento do exército americano, entra em quarentena, prendendo, num hotel, esses personagens todos.
A trama é por vezes apenas um pretexto para um estudo de cor, enquadramentos e movimentos de câmera. Há um encontro inusitado de pessoas diferentes que passam a se relacionar de algum modo num lugar do qual elas não podem sair, como nesses reality shows de confinamento. Há ainda a dimensão fora da peça, dos criadores e do mestre de cerimônias interpretado por Bryan Cranston, que funciona também como uma instância crítica. Ou seja, três estágios de representação que por vezes se bifurcam e se cruzam, criando uma deliciosa brincadeira metalinguística.
Coisas bizarras saem da boca dos personagens, outros reagem de forma inesperada a estímulos dos mais diversos. Um ET surge para roubar o asteroide que caiu ali e depois volta para devolvê-lo. Com o asteroide na mão, posa para uma foto. Tudo é pretexto para o diretor desfilar o que entende do comportamento humano, de suas esquisitices, muitas vezes comparando-os a personagens de desenho animado. Os próprios personagens questionam o diretor da peça por não entenderem o que está acontecendo, numa brincadeira que espelha a confusão propositada que está em cena.
Anderson City
No estilo, Anderson continua na mesma toada de seus filmes anteriores. Os movimentos de câmera são quase sempre horizontais, geralmente em linhas retas, assemelhando-se aos do cavalo num jogo de xadrez, ou numa engenhosa combinação de travellings com panorâmicas. A frontalidade é constante. Personagens olham para a câmera com muita frequência, em diálogos que desviam do naturalismo e expressões dramáticas minimizadas. As crianças (ou adolescentes) geniais e geniosas estão presentes mais uma vez. Existe informação no fundo dos planos, eventualmente coincidente com alguma informação importante em primeiro plano. Em certo momento, um almoço ao ar livre, com uma cobertura vazada que permite a entrada da luz do sol deixa todos os personagens como elementos de uma pintura pontilhista. Georges Seurat e Van Gogh se encontram.
Wes Anderson cria um mundo muito particular em seus filmes, o que explica sua posição como um dos poucos cineastas contemporâneos que praticamente não permitem meios termos na recepção aos seus filmes. Ou se desgosta com raiva, ou se encanta em alguma medida. Asteroid City, nesse sentido, parece ser um dos casos mais extremos, o que explica a raiva que surge em discussões sobre ele nas redes sociais, por mais que essas redes tenham despertado o pior em nós. É certamente um de seus melhores filmes.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
Asteroid City | 2023 | 105 min | EUA | Direção e roteiro: Wes Anderson | Elenco: Jason Schwartzman, Scarlett Johansson, Tom Hanks, Jeffrey Wright, Tilda Swinton, Bryan Cranston, Edward Norton, Adrien Brody, Liev Schreiber, Hope Davis, Stephen Park, Rupert Friend, Maya Hawke, Steve Carell, Matt Dillon, Hong Chau, Willem Dafoe, Margot Robbie, Tony Revolori, Jake Ryan, Jeff Goldblum.
Distribuição: Universal Pictures.
Trailer aqui.