Apesar de historicamente inconsistente, o filme Bohemian Rhapsody emociona até quem não conhece a banda Queen.
Primeiramente, deve-se considerar que Roger Taylor e Brian May, membros do Queen, e Greg Books, arquivista oficial da banda, estiveram envolvidos na produção dessa cinebiografia. Então, certamente os fatos imprecisos existem porque seus realizadores preferiram optar pelo que funcionaria melhor na narrativa da história que levaram para a tela.
O enredo
O relato começa focando em Freddie Mercury (Rami Malek), trabalhando no aeroporto de Heathrow, na grande Londres, em crise com seu pai. Em seguida, o vemos assistindo a um show do Smile, banda onde tocavam Brian May (Gwilym Lee) e Roger Taylor (Ben Hardy), quando conhece sua futura esposa Mary Austin (Luce Boynton). Quando o Smile perde seu vocalista, Mercury entra em seu lugar, mostrando personalidade forte em sua primeira apresentação ao vivo, já com John Deacon (Joseph Mazzello) no baixo.
O filme foca, então, a trajetória do Queen rumo ao sucesso, iniciada quando um produtor se encanta com o grupo durante a gravação do primeiro disco. Bem empresariado por John Reid (Aidan Gillen), logo surge uma turnê pelos EUA. Talvez por ter uma pegada americanizada, a música “Fat Bottomed Girls” ilustra essa passagem, apesar de que ela só entraria no sétimo álbum do Queen, “Jazz”.
As melhores cenas
As sequências mais empolgantes do filme Bohemian Rhapsody são as que mostram o processo de criação das músicas. Por exemplo, a banda se fecha em uma casa afastada para compor o que viria a ser o LP “A Night at the Opera”. Nesse estúdio improvisado, Freddie Mercury cria “Love of my Life”, em homenagem a Mary Austin. No entanto, essa cena marca como a sua primeira experiênciagay, com um beijo forçado que ele recebe de Paul Prenter. Posteriormente, este se tornaria seu amante e empresário pessoal – e o vetor de sua ruína, conduzindo Mercury às drogas e à promiscuidade.
A origem da canção “Bohemian Rhapsody” gera uma das cenas mais cômicas do filme. Ela acontece quando Mercury apresenta ao fictício produtor Ray Foster (Mike Myers, irreconhecível) a proposta inovadora de mesclar a ópera ao rock do Queen. Alpem disso, o processo de gravação também é hilário, com Roger Taylor se esgoelando como uma galinha para cantar a palavra “Galilleo” no tom mais agudo possível. Outra piada com Taylor é a gozação que ele sofre pela sua composição “I’m In Love With My Car”, cuja letra os outros membros consideram uma piada.
Depois, quando ouve a versão final de “Bohemian Rhapsody”, o produtor Foster ridiculariza essa ousadia e desiste da banda. Em seguida, o filme mostra as críticas negativas na imprensa, contrapondo logo em seguida com um trecho do Queen tocando a canção ao vivo para uma plateia loucamente entusiasmada.
Inconsistências históricas
Para acelerar a ascensão do Queen no enredo, o filme faz uma salada cronológica dos fatos. O show do Queen no Morumbi, que aconteceu em 1981, aparece logo em seguida à gravação de “A Night at the Opera”, de 1975, e ainda descrito como se fosse no Rock In Rio. Na verdade, foi em São Paulo que o público cantou, pela primeira vez, a letra inteira de “Love of my Life”, surpreendendo os músicos da banda. Contudo, a maior plateia reunida pelo Queen foi no festival carioca em 1985.
A criação de “We Will Rock You” a partir da inspiração de Brian May, que queria uma música simples para o público participar com a banda ao vivo, surge como consequência do impacto dessa reação dos fãs brasileiros no show. Mas essa música foi lançada antes, em 1977. E “Another One Bites the Dust”, a canção dançante de John Deacon, de 1980, é criada no filme muito mais tarde, quando já havia um certo distanciamento por parte de Freddie Mercury.
Entretanto, essas inversões da linha do tempo funcionam no roteiro, e geram grande carga dramática com a deterioração do relacionamento de Mercury com o resto da banda. E isso também está bem mais exagerado no filme do que o que aconteceu de fato. Afinal, quando na realidade Mercury gravou um álbum solo, Brian May e Roger Taylor também já haviam lançado os seus respectivos discos paralelos.
As crises da banda no filme
O filme Bohemian Rhapsody passa então a contar como Mercury se perde, influenciado por Paul Prenter. O casamento com Mary Austin termina quando ela o ajuda a se assumir gay. Do mesmo modo, o vocalista se sente só e abandonado, apesar de milionário, após aceitar um contrato de US$ 4 milhões para lançar sua carreira solo. Afasta-se da família e dos outros membros do Queen, e mergulha nas drogas e nas orgias. Mesmo assim ,a imagem de Mercury é preservada no filme, que não mostra cenas escandalosas dessa sua perdição.
Apesar de o Queen nunca ter se separado, o filme mostra a reunião da banda na apoteótica apresentação de 20 minutos no festival Live Aid, no estádio de Wembley, em Londres. A sequência capta todo o entusiasmo do momento, mas se estende demais mostrando praticamente quatro músicas inteiras, que podem cansar o espectador que não é um fã da banda.
Há alguns clichês que poderiam ser evitados. Como, por exemplo, mostrar, durante a exitosa performance no Live Aid, o produtor interpretado por Mike Myers arrependido por não ter acreditado em “Bohemian Rhapsody”. Ou então, sua família vendo o filho pela televisão, toda emocionada.
Elenco
Contudo, o maior acerto são os personagens. O protagonista, Freddie Mercury, não é o estereotipado astro do rock doidão. Ele, de fato, se afunda devido às más companhias. Por isso, maltrata as pessoas que ama, mesmo possuindo um coração de ouro. Sua sensibilidade extrema volta a ser canalizada para o bem com o cuidado de Mary Austin, outro ótimo personagem. Os atores Rami Malek e Luce Boynton encarnam seus papéis com muita garra, incorporando-os com autenticidade. Especificamente em relação a Malek, o ator se apropria intimamente da persona da celebridade que todos conhecem. Como resultado, passamos a acreditar que o próprio Mercury está nas telas, mesmo que fisicamente o ator não seja sósia dele.
O mesmo vale para os demais membros do Queen. Os atores se parecem com eles, mas não chegam a ser sósias. Especialmente Ben Hardy, bem diferente de Roger Taylor. Mas são coadjuvantes que funcionam bem, cada um com características de personalidade bem definidas. Taylor é briguento e provocador, Brian May é calmo e apaziguador, e John Deacon racional.
Vale a pena ver?
Para os fãs, há um easter egg durante os créditos: imagens inéditas do Queen tocando “Don’t Stop Me Now” ao vivo.
E Bohemian Rhapsody ganha o espectador, principalmente os fãs do Queen, já na abertura. Isso quando a “Fox Fanfare” que acompanha o logo da 20th Century Fox é tocada com guitarra com o timbre inconfundível de Brian May. E o filme segue forte, principalmente quando foca a ascensão da banda e o processo de criação de várias canções hoje famosas.
Mesmo mudando alguns fatos e datas, que pode aborrecer alguns seguidores do grupo inglês, o drama é preservado. Por isso emociona tanto a cena em que Freddie Mercury revela ser portador de AIDS para seus companheiros do Queen. Logo em seguida, ele demonstra sua força ao retornar para os palcos e cantar “We Are The Champions”. Não foi bem assim que aconteceu, Mercury só foi diagnosticado anos depois do Live Aid. Porém, Bohemian Rhapsody é um filme de ficção e não um documentário.
Enfim, o desrespeitos aos detalhes dos fatos se justificam se a narrativa dramática ganha força. Basta nos lembramos de O Homem Que Matou o Fascínora (The Man Who Shot Liberty Valance, 1962), de John Ford. Nele estava a célebre frase: “Quando a lenda é maior que o fato, publique-se a lenda.”
Ficha técnica:
Bohemian Rhapsody (Bohemian Rhapsody, 2018) Inglaterra/EUA. 134 min. Dir: Bryan Singer. Rot: Anthony McCarten. Elenco: Rami Malek, Lucy Boynton, Joseph Mazzello, Mike Myers, Ben Hardy, Aidan Gillen, Gwilym Lee, Tom Hollander, Allen Leech, Jess Radomska, Aaron McCusker, Michelle Duncan, Max Bennett, Charlotte Sharland, Ace Bhatti, Jesús Gallo, Ian Jareth Williamson, Jorge Leon Martinez, Dickie Beau, Alicia Mencía Castaño.
Distribuição: 20th Century Fox
Trailer:
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