Caros Camaradas! Trabalhadores em Luta, do veterano diretor russo Andrei Konchalovsky, joga as luzes sobre o Massacre de Novocherkassk.
Em 1962, na cidade de Novocherkassk, uma manifestação de protesto contra a falta de alimentos e suprimentos, bem como contra a redução dos salários, foi reprimida pelo governo soviético com violência. Por fim, resultou em dezenas de mortos e feridos. Tal evento permaneceu em segredo até 1992, por determinação da KGB, lembrando o que a União Soviética faria também com o desastre nuclear de Chernobyl.
O roteiro de Andrei Konchalovsky e Elena Kiseleva individualiza o acontecimento para, assim, cativar o espectador. Dessa forma, acompanhamos a história na perspectiva de Lyuda, uma mulher que trabalha no comitê do Partido Comunista. Sempre apoiando o governo, ela defende os tempos de ditadura stalinista, colocando-a em conflito com a filha Svetka, que se insere na luta dos trabalhadores por melhores condições.
Caros Camaradas! Trabalhadores em Luta lança um olhar crítico sobre a sua protagonista. Questiona a sua moral, pois mostra que, além de ter um caso com um homem casado, Lyuda se aproveita dos privilégios do seu cargo para furar a fila dos suprimentos. Por causa dessa regalia, ela não compreende os motivos da revolta dos manifestantes. Contudo, o desfecho violento que ela testemunha, alinhado com a aflição pela filha que participava do protesto, coloca em xeque sua visão sobre o governo.
A direção
Andrei Konchalovsky nasceu em 1937 e começou a dirigir em 1961. Seus filmes Tio Vania (1970) e Siberíada (1979) obtiveram boa repercussão internacional. Com isso, carimbou seu passaporte para os EUA, trabalhando em produções como Os Amantes de Maria (1984) e Expresso para o Inferno (1985).
Essa ampla bagagem de experiência culmina com a realização deste belo Caros Camaradas! Trabalhadores em Luta. Aliás, essa produção já ganhou reconhecimento da Rússia, que a escolheu para concorrer ao Oscar de melhor filme internacional. Além disso, recebeu o prêmio especial do júri no Festival de Veneza.
Konchalovsky opta acertadamente pela fotografia em preto e branco e pelo formato de tela 1.33:1, remetendo ao aspecto da televisão na época dos acontecimentos. De um lado, isso serve para distinguir a administração da Rússia com a da então União Soviética, o que evita qualquer problema político do filme com o governo atual. Por outro lado, contribui para reforçar ao espectador que se trata de um acontecimento do passado que foi deliberadamente ocultado.
A protagonista
No papel da protagonista, o diretor conta com Yuliya Vysotskaya, atriz com quem Konchalovsky já trabalhou antes. Por exemplo, em O Quebra Nozes: A História Que Ninguém Contou (2010) e Paraíso (2016). Yuliya Vysotskaya alterna momentos contido com explosivos para construir uma personagem desafiante, pois ela passa por uma drástica transformação durante o filme. Começa como uma apoiadora do governo e, após as vivências durante os dois dias que o roteiro acompanha, termina suplicando por tempos melhores.
Visualmente, o diretor ilustra essa transição da personagem principal. Na primeira parte do filme, Lyuda muitas vezes está espremida entre paredes ou outros bloqueios nas laterais da tela. Assim, comunica a ideia de sua visão limitada. Nas partes finais, ela está em espaços mais abertos, principalmente na última cena, em cima do telhado do prédio onde mora. De forma semelhante, o uso de espelhos para refletir a imagem de Lyuda é frequente, denotando sua ainda incapacidade de reconhecer sua essência.
Mantendo um tom seco que segue a personalidade da sua protagonista, Caros Camaradas! Trabalhadores em Luta retrata com seriedade, mas sem distanciamento, esse erro trágico que o governo preferiu esconder.
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Ficha técnica:
Caros Camaradas! Trabalhadores em Luta (Dorogie Tovarishchi) 2020. Rússia. 121 min. Direção: Andrei Konchalovsky. Roteiro: Andrei Konchalovsky, Elena Kiseleva. Elenco: Yuliya Vysotskaya, Vladislav Komarov, Andrey Gusev, Yuliya Burova, Sergei Erlish, Alexander Maskelyne.
Distribuição: A2 Filmes