Cinema, Aspirinas e Urubus conta uma estória alegórica do Brasil.
A trama de passa em 1942, porém, continua aplicável aos tempos atuais. Johann saiu de seu país natal, a Alemanha, e veio para o Brasil. Fugiu da guerra, mas também viu a oportunidade de vender Aspirina, produzida pela empresa alemã Bayer, para um mercado novo e promissor. Sua estratégia de marketing era chegar em uma cidade pequena e montar uma tela para exibir filmes de propaganda do medicamento criados especialmente para o Brasil. O povo simples, que não conhecia ainda o cinema e sequer sonhava que existiria uma televisão, ficava encantado com a engenhoca e com os efeitos incríveis do remédio.
Após viajar pelas cidades do sul do Brasil, Johann agora segue sua jornada solitária pelo árido sertão nordestino. Cinema, Aspirinas e Urubus se inicia nesse momento. E apresenta esse cenário sem precisar contar em palavras. Um fade-in do branco que se mantém no branco estourado mais incômodo do que aquele dos filmes de Glauber Rocha. E, intencionalmente, esse desequilíbrio do branco permanecerá por todo o filme – em evidência nas paisagens que vemos pela janela do interior do caminhão de Johann. Esse brilho que ofusca os olhos leva para dentro do cinema o desconforto do deserto sertanejo.
Solidão
E a solidão do viajante se faz sentir porque leva quase oito minutos para ouvirmos um diálogo entre personagens. Até então, só o som do rádio quebrava o silêncio. Por isso, Johann aceita dar carona para todos que lhe pedem. Assim, atravessando estradas de terra poeirentas, conhece Ranulpho, caronista que o acompanhará até Triunfo, cidade promissora pernambucana. De lá, Ranulpho pretende seguir para o Rio de Janeiro.
Os dois personagens retratam esse nosso Brasil. Ranulpho representa aqueles que sempre falam muito mal do seu próprio país e do seu povo, sem se dar conta que ele também faz parte desse povo. E mantém a ilusão que se for para a capital (Rio de Janeiro) seu destino mudará. Além disso, quer a amizade de Johann porque pensa que o estrangeiro é sempre melhor. Se encanta com o caminhão do alemão, e ainda mais com o cinema improvisado. Ranulpho gostaria de ser como o europeu, e até lhe pede que o indique para trabalhar na “fábrica da aspirina”. Sem perceber, sua atitude se assemelha ao tal povo que ele maldiz. Essa gente como ele também prefere o estrangeiro, como faz a breve companheira de carona Lindalva, que escolhe transar com Johann e não com ele.
Por outro lado, Johann acha tudo no Brasil interessante. Valoriza nossa terra e nossa gente mais do que os próprios brasileiros. Mas, tem a intenção de ganhar dinheiro aqui para retornar à sua terra quando a guerra acabar, revelando o pensamento colonialista dos europeus em relação às terras do hemisfério sul.
Segunda Guerra Mundial
Em paralelo com o road movie dos dois viajantes, se desenrola a Segunda Guerra Mundial, que acompanhamos pelo rádio de Johann. O alemão fugiu da guerra, mas o conflito se aproxima cada vez mais do Brasil. Após submarinos alemães atacarem algumas embarcações civis brasileiras, o governo brasileiro declara guerra à Alemanha e seus aliados, afetando os estrangeiros desses países que estavam em nossas terras. Justo quando Johann, em Triunfo, fechava a venda de toda sua carga para um empresário local.
Então, Johann resolve esconder sua nacionalidade e partir para o trabalho na extração de borracha na Amazônia. Esse destino significa um retrocesso na sua jornada, pois vivenciará o último recurso dos mais flagelados. Os urubus que sobrevoam a estação de trem de onde parte a viagem para a Amazônia são uma metáfora disso. Eles representam aqueles que ganharão dinheiro em cima dessa mão de obra barata. Mas não vemos Johann reclamando, pois ele prefere isso a ficar numa prisão ou voltar para a Alemanha em guerra.
Nada mudou
Mas Ranulpho pensa diferente e não quer ficar tão próximo desse “povinho”. Possui a ilusão de crescer e, por isso, termina o filme feliz, dirigindo o caminhão de Johann rumo ao Rio de Janeiro. Ele acredita que está se equiparando ao estrangeiro, mas o filme dá um corte nessa fantasia com o fade-out para o branco. Esse recurso estilístico une o fim de Cinema, Aspirinas e Urubus ao seu início, alertando que nada mudou. Esse momento de euforia de Ranulpho é como a aspirina, que corta os efeitos do mal, mas não cura a doença.
Assim, Cinema, Aspirinas e Urubus conta uma estória aparentemente simples, mas que permite interpretações alegóricas. E o diretor Marcelo Gomes filma com opções estéticas corajosas – além da fotografia com o branco estourado e textura granulada, também há muitos closes extremos e jump-cuts. Tudo isso torna o filme diferenciado, que justamente o fez ser indicado para a seleção Un Certain Regard em Cannes.
Ficha técnica:
Cinema, Aspirinas e Urubus (2005) Brasil. 99 min. Dir: Marcelo Gomes. Rot: Karim Aïnouz, Paulo Caldas, Marcelo Gomes, João Miguel. Elenco: Peter Ketnath, João Miguel.
Assista ao trailer do filme Cinema, Aspirinas e Urubus