O filme e a corrida espacial
Ao pensarmos em filmes espaciais dos anos 60 e 70, é quase instintivo evocarmos 2001: Uma Odisseia No Espaço (1968) de Stanley Kubrick, Solaris (1972) de Andrei Tarkovski ou, de um ponto de vista comercial, Star Wars (1977) de George Lucas. Existem, porém, inúmeras produções estrelares que nasceram durante aquele período, nos Estados Unidos principalmente. Isso se dá, como é evidente, por conta do contexto vivido pelo mundo naquele momento: Guerra Fria a todo vapor, com a concentração das superpotências em atingir pioneirismos na exploração espacial – a dita “corrida espacial”. Naturalmente, parte da produção artística se debruçou sobre o tema.
Existe uma vasta quantidade de longas do gênero parcialmente apagados pela história, desde o bom O Enigma de Andrômeda (1971) de Robert Wise, ao bizarro Papai Noel Conquista os Marcianos (1964) de Nicholas Webster. O fato é que grande parte deles acaba sendo ofuscado pelo arrebatador filme de Kubrick.
A sátira do esgotado
Como é sabido aos que têm algum conhecimento de história do cinema (apesar de isso ser verdade na arte e cultura no geral), quando existe uma ampla produção de um determinado gênero ao ponto do esgotamento prescindível, é comum que se forme algum núcleo de criação de sátiras que homenageiam e/ou ironizam as produções passadas. Um exemplo célebre e concreto disso é quando Pânico (1996), de Wes Craven, revitaliza e ironiza o subgênero slasher – consolidado por John Carpenter – e Todo Mundo em Pânico(2000) eleva isso à décima potência, indo em direção à paródia. O texto do meu professor Luiz Carlos Oliveira Jr. (https://www2.ufjf.br/cinemovimento/sessao-ensaio-critico/2020-2/outubro/wes-carpenter/) é categórico em relação ao exemplo citado, por isso não vejo sentido em me estender…
Dark Star: prelúdios de dois amigos
Após toda essa contextualização, vamos a Dark Star (1974), estreia no cinema do argumentista, músico, produtor, roteirista, editor, compositor e diretor (sim, tudo isso) John Carpenter.
Dark Star é uma espaçonave que está há vinte anos em missão no espaço, com o objetivo de destruir planetas instáveis que ameaçam as rotas comerciais. Os problemas começam com o surgimento de um alienígena e quando uma das bombas (que é “sensível” e perspicaz) se recusa a cumprir sua missão.
Dark Star – que chamarei assim pela falta de um nome oficial no Brasil (em Portugal foi nomeado “Estrela Negra”) – é uma sátira explícita ao filme estrelar abundantemente produzido naquele período. O seu alienígena se assemelha propositalmente a uma bola de praia, e a bomba que é “viva” (através de I.A.) sente medo.
Temos aqui um projeto de amor realizado por dois amigos; Dan O’Bannon, que co-escreve e edita, além de atuar, supervisionar os efeitos visuais e ser o designer de produção; e John Carpenter, que além de também ser roteirista, compõe a trilha sonora e produz o longa. Ambos estudavam no curso de cinema da Universidade do Sul da Califórnia e escreveram juntos o roteiro que se chamaria “The Electric Dutchman”.
Estética e efeitos especiais
Mais pertinente ao presente ensaio são, porém, as características estéticas já desenvolvidas por Carpenter em sua estreia como diretor. É relevante, em primeira análise, notar que o filme se passa em um ambiente fechado, o que se repetiria em, por exemplo, parte de Assalto ao 13º DP (1976) e O Enigma de Outro Mundo (1982), ambos entre meus filmes preferidos do realizador. Já existe, mesmo que em um estado preambular, uma noção muito competente de decupagem, especialmente se colocarmos em perspectiva o pouco espaço existente para efetiva movimentação e penetração da câmera no espaço de encenação.
Tem-se aqui uma iluminação surpreendentemente moderna, com cores que fazem lembrar (em níveis de execução diferentes, tendo em vista os orçamentos disponíveis e o desenvolvimento do aparato cinematográfico) as de Nicolas Winding Refn.
Contudo, o que mais chamou atenção na época, não só do público, mas dos críticos, foi a qualidade dos efeitos especiais, alcançados com uma verba tão pequena (sessenta mil dólares para um sci-fi que se passa no espaço). Um dos deslumbrados com a qualidade atingida por O’Bannon foi Alejandro Jodorowsky, que o convidou para participar de seu tão estimado “Duna”– para mais informações, e uma descrição apaixonada do projeto, veja o documentário Duna de Jodorowsky (2013). Depois do longa proposto pelo chileno ser cancelado de vez, Dan O’Bannon acabou sendo convidado para um outro filme de ficção científica estrelar. Esse filme era nada mais nada menos que Alien – O 8.º Passageiro (1979) de Ridley Scott, um dos filmes mais importantes da história do terror.
O feitiço contra o feiticeiro
No ano anterior, seu amigo e parceiro em Dark Star lançara Halloween (1978), outro marco, e principal disseminador de um dos subgêneros mais prolíficos da década que viria: o slasher. Se Carpenter e O’Bannon ainda estavam em estado embrionário ao lançarem o filme aqui comentado, eles nascem na indústria nos anos posteriores; agora, ao invés de escreverem sátiras sobre os filmes mais falados, seriam eles os satirizados.
É contra essa mesma indústria que Carpenter se revoltaria através de uma petulância estética e um atrevimento plástico brilhantemente construído. Mas isso já é assunto para outro ensaio.
Texto escrito pelo crítico e universitário de cinema Enrico Mancini, especialmente para o Leitura Fílmica.