O segundo dia, conforme prometido, teve mais filmes. Aliás, é o dia mais cheio de todo o festival nesse sentido: três longas e três curtas. Começo pela Sessão Panorama, com dois curtas e um longa exibidos na tenda improvisada com uma outra telinha, perto da telona principal do festival.
Os dois curtas são bem superiores ao longa. Em Cordel da Vila: A Rainha Louca Contra o Escandaloso, de Gil Leal, temos um hip-hop envolvente e um cinema de sombras à Germaine Dulac. Trata-se de um belo curta potiguar, realizado com inteligência e uma surpreendente visão histórico-política do Rio Grande do Norte. O carioca Manhã de Domingo, de Bruno Ribeiro, alia representatividade – a protagonista é uma mulher negra, como no primeiro curta e no longa – a uma sempre bem-vinda mise en scène caprichada, exceto por um ou outro momento que não abala o todo.
Regra 34, de Júlia Murat, premiado em Locarno, me pareceu um filme manco. Mostra uma personagem dividida em uma estrutura dividida: a personagem é passivo-agressiva, trata mal a amiga mas diz que a ama, diz que autoasfixia é perigoso mas adora quebrar regras; o filme acumula lugares comuns e coisas interessantes nas duas frentes, mas se sai pior quando entra nas discussões entre defensores públicos que não conseguem fugir de slogans, mesmo quando questionam outros slogans.
Sessão noturna
Na longa sessão noturna, da Mostra Competitiva, tivemos o curta rondoniense Ela Mora Logo Ali, de Fabiano Barros e Rafael Rogante. Bem-intencionado, com uma personagem que poderia ser mais tocante e uma ode à leitura contra a escravização do celular, sofre por falta de direção. Isso porque para os dois diretores, parece que o tema basta. A plateia parece ter adorado. Não me surpreenderia se ganhasse o prêmio de melhor curta na votação do público.
Uma bela experiência formal acontece com o primeiro longa da noite. A Filha do Palhaço, de Pedro Diógenes, é um mais do mesmo tratado de maneira exemplar. Traz o tema comum de reaproximação de pai com filha, ou o conhecimento do pai pela filha – o filme nos dá as duas perspectivas, de quem abandonou e de quem foi abandonada. Tem várias soluções previsíveis no enredo, incluindo o final catártico, que já se adivinha muito cedo pelo tom e pelas movimentações do filme.
Mas isso não importa porque tudo é tão bem costurado formalmente, com as atuações de todo o elenco quase sempre no tom certo e até mesmo a obrigatória cena de dança bem encaixada (afinal, Joanna é a cantora que inspirou o nome da filha), que o filme emociona sem fazer esforço. Obra de maturidade, de perdas e do que pode ser recuperado, de um cineasta que já havia demonstrado seu talento, seja em trabalho solo, seja com Guto Parente ou com a finada Alumbramento.
Na madrugada
Encerrando a noite já com uma hora completada do dia seguinte, o acreano Noites Alienígenas, de Sérgio de Carvalho, está cheio de problemas, mas com uma força inegável que vem dos atores, principalmente Chico Diaz e seu personagem, uma espécie de traficante do bem, sensível e paizão quando os novos tempos requerem um insensível sanguinário. Personagens desaparecem no meio do filme, e pensando bem, não faziam muita falta mesmo. Um disco voador como elo entre dois personagens é uma ideia interessante que não foi muito bem filmada. E nos momentos de ação o filme revela uma distância dos seus modelos mais bem-sucedidos. Mas tem a coisa do tráfico, das facções que aniquilam tudo, incluindo seus clientes, de um negócio destruído aos poucos pela ganância. Pode ser um filme problemático, mas não é um filme qualquer.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
(foto: perfil da Mostra de Cinema de Gostoso no Facebook)