Ocorreu um milagre no 4º dia da Mostra de Cinema de Gostoso. Não fui cozido lentamente na tenda. Vitaminaram os aparelhos de ar-condicionado e o lugar ficou só quente, não insuportável como estava no dia anterior. Com isso, pude ver não só o curta potiguar, o decepcionante Castelo da Xelita, de Lara Ovídio, como o longa Carvão, de Carolina Markowicz.
O curta mostra que é preciso repensar essa coisa de colocar telas de computadores em filmes. Raramente fica bom, e num filme inteiro, mesmo que seja curta, acaba ficando um tanto preguiçoso. O longa de Markowicz tem alguns problemas que me pareceram da mesma ordem dos de Paloma, longa de Marcelo Gomes que encerrou a noite. Problemas referentes ao comportamento de certos personagens e às soluções narrativas levadas por isso.
A trama de Carvão é meio bagunçada. É necessário colocar atores argentinos, dá para entender essa contrapartida. Mas logo como um traficante? E ainda um homem que se comporta como um anjo caído à Teorema até que uma reviravolta mal explicada (ou não entendi) muda o equilíbrio de forças? A outra obrigação é a luta política pela bissexualidade como condição natural das pessoas, o que tem sua força, sobretudo no cinema brasileiro, mas por vezes soa falso, como neste filme.
Paloma
A mesma coisa acontece com Paloma. Sabemos o mundo cão em que vivemos, e o preconceito que sofrem travestis e pessoas trans. Mas as mudanças de atitude do parceiro da protagonista são meio forçadas, parecem existir apenas para o efeito da dramaticidade, não como uma evolução natural de medos e preconceitos velados. Os atores, aliás, estão fracos no filme, que é todo das atrizes. No filme de Gomes esses problemas me pareceram menos graves, mas em compensação sua mise en scène é trôpega em alguns momentos, enquanto a de Carvão segue num bom nível até o fim.
Quando Fassbinder mostrou o mundo cão da diversidade sexual em sua obra-prima Num Ano Com Treze Luas, nada pareceu postiço na evolução dos personagens. Elvira (Volker Spengler) sofre as dores de suas escolhas e sofremos com ela. Existem pessoas à sua volta, não mecanismos de avançar tramas. No filme de Marcelo Gomes, o mundo cão surge à fórceps, como se fosse uma obrigação mostrar que travestis e trans sofrem e morrem por preconceito, como se já não fosse evidente. Por fim, há em Paloma a felicidade, que é mais bem resolvida em termos cinematográficos que o mundo cão: o assassinato de uma personagem tem um tratamento bem fraco nas escolhas de decupagem, enquanto os momentos mais felizes e a esperança do final, apesar da ironia da música que sobe com os créditos, conseguem nos comover porque parecem mais reais, talvez por serem mais bem filmados.
Infantaria
Finalmente, tivemos o melhor curta em competição, o alagoano Infantaria, de Laís Santos Araújo. Filme naturalmente feminista, que evita o panfleto e por isso tem muito mais força e alcance. Muito bem filmado com a exceção de umas duas cenas desculpáveis pela juventude da diretora, este belo curta mostra tanto o perigo dos abortos clandestinos quanto a ameaça do patriarcado, conforme Carla Oliveira me alertou. É do tipo de curta que cresce conforme pensamos nele, mas já no momento é perceptível o talento da diretora em alguns enquadramentos. Uma surpresa feliz para encerrar a competição.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
(foto: perfil da Mostra de Cinema de Gostoso no Facebook)