Diário de Gostoso 2022 | 4º dia | Por Sérgio Alpendre

Mostra de Cinema de Gostoso 4º dia

Ocorreu um milagre no 4º dia da Mostra de Cinema de Gostoso. Não fui cozido lentamente na tenda. Vitaminaram os aparelhos de ar-condicionado e o lugar ficou só quente, não insuportável como estava no dia anterior. Com isso, pude ver não só o curta potiguar, o decepcionante Castelo da Xelita, de Lara Ovídio, como o longa Carvão, de Carolina Markowicz.

O curta mostra que é preciso repensar essa coisa de colocar telas de computadores em filmes. Raramente fica bom, e num filme inteiro, mesmo que seja curta, acaba ficando um tanto preguiçoso. O longa de Markowicz tem alguns problemas que me pareceram da mesma ordem dos de Paloma, longa de Marcelo Gomes que encerrou a noite. Problemas referentes ao comportamento de certos personagens e às soluções narrativas levadas por isso.

A trama de Carvão é meio bagunçada. É necessário colocar atores argentinos, dá para entender essa contrapartida. Mas logo como um traficante? E ainda um homem que se comporta como um anjo caído à Teorema até que uma reviravolta mal explicada (ou não entendi) muda o equilíbrio de forças? A outra obrigação é a luta política pela bissexualidade como condição natural das pessoas, o que tem sua força, sobretudo no cinema brasileiro, mas por vezes soa falso, como neste filme.

Paloma

A mesma coisa acontece com Paloma. Sabemos o mundo cão em que vivemos, e o preconceito que sofrem travestis e pessoas trans. Mas as mudanças de atitude do parceiro da protagonista são meio forçadas, parecem existir apenas para o efeito da dramaticidade, não como uma evolução natural de medos e preconceitos velados. Os atores, aliás, estão fracos no filme, que é todo das atrizes. No filme de Gomes esses problemas me pareceram menos graves, mas em compensação sua mise en scène é trôpega em alguns momentos, enquanto a de Carvão segue num bom nível até o fim.

Quando Fassbinder mostrou o mundo cão da diversidade sexual em sua obra-prima Num Ano Com Treze Luas, nada pareceu postiço na evolução dos personagens. Elvira (Volker Spengler) sofre as dores de suas escolhas e sofremos com ela. Existem pessoas à sua volta, não mecanismos de avançar tramas. No filme de Marcelo Gomes, o mundo cão surge à fórceps, como se fosse uma obrigação mostrar que travestis e trans sofrem e morrem por preconceito, como se já não fosse evidente. Por fim, há em Paloma a felicidade, que é mais bem resolvida em termos cinematográficos que o mundo cão: o assassinato de uma personagem tem um tratamento bem fraco nas escolhas de decupagem, enquanto os momentos mais felizes e a esperança do final, apesar da ironia da música que sobe com os créditos, conseguem nos comover porque parecem mais reais, talvez por serem mais bem filmados.

Infantaria

Finalmente, tivemos o melhor curta em competição, o alagoano Infantaria, de Laís Santos Araújo. Filme naturalmente feminista, que evita o panfleto e por isso tem muito mais força e alcance. Muito bem filmado com a exceção de umas duas cenas desculpáveis pela juventude da diretora, este belo curta mostra tanto o perigo dos abortos clandestinos quanto a ameaça do patriarcado, conforme Carla Oliveira me alertou. É do tipo de curta que cresce conforme pensamos nele, mas já no momento é perceptível o talento da diretora em alguns enquadramentos. Uma surpresa feliz para encerrar a competição.

Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.

(foto: perfil da Mostra de Cinema de Gostoso no Facebook)

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