Em sintonia com o seu título, Duelo Silencioso (tradução literal do original) é um dos filmes menos ruidosos de Akira Kurosawa, cineasta marcado por seu cinema grandioso.
O prólogo, porém, desmente tal afirmação. Trecho mais nervoso do filme, esse início se passa num posto médico no front da guerra. Atendendo um caso urgente atrás do outro, o cirurgião Kyoji (Toshiro Mifune) acidentalmente se contamina com sífilis enquanto opera seu paciente Sussumu (Kenjiro Uemura).
É notório o estilo de Kurosawa na construção da tensão dessa cena. Para começar, cai uma chuva torrencial (a força da natureza sempre em destaque nos filmes desse cineasta), que provoca goteiras sobre a mesa de cirurgia, contidas por uma tigela metálica. Apesar da chuva, o insuportável calor obriga um dos auxiliares a usar um leque para aliviar o paciente. Esses e outros elementos criam uma angustiante sinfonia de sons: a chuva, a goteira, os gemidos dos soldados convalescentes, o leque que não pode parar. Com o mesmo intuito, em outro dia, quando o Dr. Kyoji descobre que está contaminado por sífilis, dois jipes passam na rua fazendo um barulho estrondoso. Essas são alternativas para Kurosawa ser grandiosamente dramático sem fugir do realismo cotidiano.
A vida com sífilis
Depois da guerra, Kyoji atende na clínica do seu pai, o Dr. Konosuke (Takashi Shimura em papel coadjuvante). Mas, a contaminação na guerra lhe trouxe graves consequências. Embora se trate com injeções diárias de medicamento, ele decide romper o noivado de seis anos com Misao (Miki Sanjo), sem contar a ela o motivo, pis a sífilis era uma doença estigmatizada por ser sexualmente transmissível.
Nesse sigilo reside o principal tema do filme. Kyoji escolhe não fazer mais sexo para não transmitir a doença para ninguém. O que representa um enorme sacrifício, como mostra a explosiva confissão dele diante da enfermeira Rui (Noriko Sengoku). Mas, ele se mantém controlado na presença da ex-noiva Misao. Por isso, quando ela o visita pela última vez, antes de se casar com outro por conveniência, Kurosawa coloca duas escandalosas buzinadas do trem que passa ao lado da clínica – efeito que o diretor usa várias vezes em seus filmes, e que já havia empregado neste. Na trama, como troca para suportar essa situação, Kyoji se dedica à sua profissão com a missão de dar esperança a quem precisa.
E por que duelo?
A fim de enfatizar a imaculável moral do protagonista, o filme o contrapõe com Sussumu. O ex-soldado com sífilis que infectou o dr. Kyoji assume uma postura negligente. Recusa-se a se abster dos prazeres da vida por causa da doença. Assim, acaba condenando sua esposa a uma gravidez de risco e com improvável chance de gerar um bebê sadio. A condição de perigo ambulante fica belamente simbolizada no trecho com Sussumu ao fundo da cena, filmado através de uma janela com os vidros quebrados (um pedaço dele chega a cair).
Assim, embora Akira Kurosawa seja mais lembrado pelos seus grandes filmes espetaculares, esse gendai-geki Duelo Silencioso prova que Akira Kurosawa é um diretor genial também quando trabalha numa chave mais contida.
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Ficha técnica:
Duelo Silencioso | Shizukanaru ketto | 1949 | Japão | 95 min. | Direção: Akira Kurosawa | Roteiro: Akira Kurosawa, Senkichi Taniguchi | Elenco: Toshiro Mifune, Takashi Shimura, Miki Sanjo, Kenjiro Uemura, Chieko Nakakita, Noriko Sengoku.