Usar um asno como protagonista de um filme é uma audácia ainda maior porque permite instantaneamente a comparação com A Grande Testemunha (Au Hazard Balthazar, 1966), de Robert Bresson. Mesmo que o diretor do novo filme seja um veterano, no caso, Jerzy Skolimowski, que iniciou sua carreira no início dos anos 1960, participou da nova onda polonesa e tem alguns filmaços no currículo, a comparação tende a soar desfavorável. O filme de Bresson é gigante. Poucos filmes contemporâneos chegam a essa estatura.
A favor de Skolimowski devemos dizer que ele tem feito longas curtos, que ficam abaixo dos 90 minutos, uma dádiva nestes tempos tão prolixos. Outro ponto que costuma ser favorável: tem feito filmes esquisitos desde seu retorno ao cinema com Quatro Noites com Ana (Cztery noce z Anna, 2008). Bem ou mal, essa esquisitice faz com que os filmes sejam no mínimo instigantes, a não ser que algo desande desde o início.
Pensando bem, Skolimowski sempre fez filmes esquisitos. É que nos anos 1960 e 70 a esquisitice estava mais de acordo com o que os cinéfilos buscavam. Desde esse retorno de 2008, seus filmes tendem a ser recebidos de modo bem desigual, mesmo o melhor deles, Matança Necessária (Essential Killing, 2010), o que mostra ao mesmo tempo ousadia e descompasso. Se o descompasso viesse somente pela ousadia, tudo bem, mas em 11 Minutos (11 Minut, 2015), seu longa anterior, vem mais da fragilidade das ideias dramáticas, da costura das histórias e da mise en scène.
Esquisitice sem fim
EO (2022), seu mais recente longa, também se enquadra nos dois pontos favoráveis. Tem 84 minutos e uma esquisitice sem fim. O filme é cheio de câmeras lentas e planos que estudam a anatomia de animais, não só do pequeno asno, mas de cavalos com os quais ele se avizinha por circunstância, de sapos, aranhas e corujas que passam por seu caminho.
Nesse sentido, a sintonia é menos com Bresson do que com Shohei Imamura e seu cinema de entomologista. Imamura parte disso para investigar o que tem de animal em todos nós. Skolimowski parece buscar uma veia mais cósmica, a ligação espiritual entre o asno chamado EO e sua antiga dona, mas também entre ele, a natureza e seu destino.
Por vezes, EO parece uma viagem de ácido lisérgico tal como narrada por Roger Corman em Viagem ao Mundo da Alucinação (The Trip, 1967). Vemos uma explosão de cores e filtros, câmera girando e o asno descobrindo o seu caminho como a nave de Kubrick em 2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odissey, 1968) atravessa galáxias e planetas desconhecidos numa via psicodélica com a cara de 1968.
Em outros momentos, o absurdo assume, como quando o asno espancado se transforma num bicho mecânico e continua sua perambulação à procura de um sentido. Quando reencontramos o asno, ele está num hospital veterinário para grandes animais. Continuamos seu percurso dali. E faz parte do absurdo nos depararmos, num determinado e inesperado momento, com uma participação de Isabelle Huppert. Uma vez que o bichinho erra pelo mundo, pode encontrar o que quer que seja. Um filme mutante, que se reorganiza a todo momento e obriga uma reorganização de nosso entendimento sobre ele.
O próximo plano me interessa?
Importante, no caso, e subjetivo para cada crítico, é notar que por mais que seja norteado para a loucura e pelo inesperado, o filme nunca deixa de ser interessante. A resposta provável à determinante pergunta “o próximo plano me interessa?” é um firme “sim”. Nesse teste o filme passou.
O inocente EO é testemunha do horror e da graça, mas Skolimowski prefere destacar o horror: assassinatos, brigas, traições e crueldade. O estado da Europa (e do mundo) nesta década de 2020, em que a pandemia mostrou o pior da humanidade.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
EO | 2022 | 88 min | Polônia, Itália | Direção: Jerzy Skolimowski | Roteiro: Ewa Piaskowska, Jerzy Skolimowski | Elenco: Sandra Drzymalska, Isabelle Huppert, Lorenzo Zurzolo, Mateusz Kosciukiewicz, Tomasz Organek, Lolita Chammah.