Com quase quatro horas de duração, Era Uma Vez na América é o monstruoso épico de Sergio Leone que acompanha a saga de David “Noodles” Aaronson, um gangster judeu em Nova York.
E esse relato é contado através de uma narrativa intrincada. Além de alternar diferentes momentos da vida de Noodles (Scott Tiler/Robert De Niro), o filme prefere não entregar explicações objetivas. Pelo contrário, o lacônico personagem principal abre a possibilidade de várias interpretações para a história. Por esse motivo, os primeiros 15 minutos do filme praticamente não possuem diálogos.
A história em ordem cronológica
Cronologicamente, a primeira fase da vida de Noodles retratada em Era Uma Vez na América relata sua adolescência. Assim, acompanhamos como ele é criado nas ruas, um dos líderes de um bando de cinco garotos que praticam pequenos crimes. Logo, começam a ganhar mais dinheiro ao se envolverem com traficantes de bebidas na época da Lei Seca. Em paralelo, testemunhamos sua paixão incontrolável por Deborah (Jennifer Connelly/Elizabeth McGovern), que o despreza. Eventualmente, uma tragédia resulta na prisão de Noodles por assassinato.
Então, a fase seguinte, na linha de tempo do protagonista, trata da época em que Noodles sai da penitenciária, após cumprir sua pena. Já estamos no início dos anos 1930, e o bando está progredindo, sob o comando de Max (Rusty Jacobs/James Woods). E um novo tipo de serviço sujo surge para eles: agir como milícia de sindicatos. Porém, com o fim da Lei Seca, um ousado plano levará a uma nova tragédia. Logo depois, Noodles busca um pouco de alívio numa casa de ópio. Em paralelo, Noodles violenta Deborah ao saber que ela se mudará para Hollywood. Por fim, ele descobre que o dinheiro que o bando havia guardado foi roubado. Então, ele decide esquecer tudo e sumir.
Finalmente, já na casa dos 50 anos, Noodles recebe uma maleta cheia de dinheiro como pagamento adiantado de um misterioso trabalho. E descobrirá o que aconteceu com Deborah e Max.
Faroeste
Apesar de trabalhar em outro gênero de filme em Era Uma Vez na América, Sergio Leone carrega algumas características do faroeste que marcou sua carreira. Logo no início, encontramos evidências disso na violência empregada por gangsters contratados para vingar o delator Noodles. Primeiro, eles assassinam a sangue frio a namorada dele. Depois, torturam o seu amigo Moe. Por fim, a cena com Noodles dando um tiro na cabeça de um desses pistoleiros é, definitivamente, uma prova da influência do western, pela forma como foi filmada. Aliás, o próprio personagem principal guarda características do herói do Velho Oeste. Ou seja, quieto e friamente letal.
Adicionalmente, a marcante trilha sonora de Ennio Morricone também remete ao faroeste. Afinal, o compositor foi parceiro de Sergio Leone em vários filmes do gênero. Por exemplo: Por Um Punhado de Dólares (1964), Por Uns Dólares a Mais (1965) e Três Homens em Conflito (1966), bem como em Era Uma Vez no Oeste (1968).
Noodles
Notoriamente, Sergio Leone prioriza a construção dos personagens, sobretudo do protagonista Noodles. Por exemplo, fica nítida a mudança dele após passar anos na prisão. Antes, ele era um adolescente confiante, ousado e falador. Depois de cumprir sua pena, Noodles está calado e cauteloso, incomodado em continuar na carreira criminosa. Por fim, na maturidade, ele já não dá importância ao dinheiro. E, durante toda sua vida, sempre esteve fascinado por Deborah, um amor que ele nunca alcançou.
Atenção! Spoilers adiante!
Aliás, na própria análise de Noodles, seu melhor amigo Max e seu grande amor Deborah eram muito parecidos. De fato, essa observação se amarra perfeitamente com a parte final, quando os dois estão já casados, unidos não pelo amor, mas pela ambição. Nesse sentido, Era Uma Vez na América permite ser compreendido como uma versão do tema de O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola. Afinal, nesses dois épicos, temos a analogia crítica dos Estados Unidos. Em outras palavras, a América capitalista que se apresenta como a terra da oportunidade é terreno fértil para a evolução da ambição materialista a qualquer custo. Dessa forma, Max e Deborah representam essa ambição.
Então, Noodles se sente frustrado porque ele só conseguiria conquistar Deborah se ele fosse materialista como Max. Afinal, ela quer crescer na vida, e não se sujeitaria a ficar amarrada a um homem que não fosse rico e que não a apoiasse em sua carreira de atriz. A fim de enfatizar essa relação, o filme reduz o ritmo das cenas com Noodles e Deborah. Notoriamente, em dois trechos. Quando ele a espia por vários minutos treinando balé, quando adolescentes. E, depois, na chocante cena do estupro, quando Noodles perde o controle ao perceber que nunca conquistará o coração de sua amada.
Max
Por outro lado, perto da velhice Max reconhece que seus ideais materialistas não valeram a pena. Primeiro, tenta restituir o dinheiro que roubou dos amigos, pagando Noodles para matá-lo, o que evitaria também o agora senador a ser preso pelas falcatruas que cometeu. Em seguida, quando cancela a ordem de matar Noodles. Por isso, o caminhão de lixo com os assassinos que o aguardava se afasta sem fazer nada.
Cena final
Finalmente, a última cena, com o close-up de Noodles sorrindo após a primeira tragada na casa de ópio, permite várias interpretações. Antes de mais nada, isso acontece depois que ele testemunha os corpos de seus dois amigos e, provavelmente, o de Max, mortos pela polícia. Na verdade, sua delação visava apenas a prisão deles, para que todos não fossem mortos durante o insano plano de Max de roubar o Banco Central dos EUA. Então, seu sorriso talvez espelhe sua possibilidade de ficar com todo o dinheiro do bando que está guardado na estação de trem.
Porém, essa interpretação não se encaixaria com o personagem que foi construído durante o filme. Nesse sentido, o mais coerente é considerar que ele percebeu que o corpo carbonizado não era o de Max. E, consequentemente, seu sorriso é de ironia, ao descobrir que o amigo o enganou. Afinal, assim ele confirma sua visão de que a ambição materialista não leva a nada.
Enfim, fica a sensação de que o filme mantém algumas interpretações livres demais. Nesse sentido, algumas definições poderiam torná-lo ainda melhor. Fora isso, alguns cenários construídos em estúdio parecem artificiais e podem incomodar alguns espectadores. Além disso, a entrada dos personagens interpretados por Joe Pesci e Danny Aiello criam expectativa, mas eles praticamente não retornam ao filme.
De qualquer forma, Era Uma Vez na América é um filme cativante. Principalmente por apresentar personagens fortes, em especial Noodles com suas várias camadas que o tornam tão humano. Juntamente com O Poderoso Chefão, representa uma visão crítica da ambição materialista a qualquer preço.
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Ficha técnica:
Era Uma Vez na América (Once Upon a Time in America) 1984. Itália/EUA. 229min. Direção: Sergio Leone. Roteiro: Leonardo Benvenuti, Piero De Bernardi, Enrico Medioli, Franco Arcalli, Franco Ferrini, Sergio Leone. Elenco: Robert De Niro, James Woods, Elizabeth McGovern, Treat Williams, Tuesday Weld, Burt Young, Joe Pesci, Danny Aiello, William Forsythe, Darlanne Fluegel, Larry Rapp, Scott Tiler, Jennifer Connelly.