O questionamento é constante em Ervas Secas. Em seu novo longa, Nuri Bilge Ceylan mantém as características de seu cinema: mais de duas horas de duração, planos longos, muitos diálogos com discussões profundas e fotografia convidativa.
Samet (Deniz Celiloglu) leciona em uma escola num vilarejo isolado há quatro anos. Mas não vê a hora de ser transferido para Istambul. Quando duas alunas acusam ele e seu colega Kenan (Musab Ekici) de conduta inadequada, sua vontade de sair dali aumenta ainda mais.
O filme vai muito além dessa intriga. Adentra a política, nas conversas que ele e Kenan mantém na habitual visita a um proprietário de um comércio. E ainda mais no encontro de Samet com Nuray (Merve Dizdar), uma mulher que perdeu uma perna numa explosão.
Não há intersecção entre essas linhas narrativas, o que faz de Samet um sólido personagem com várias dimensões. Por isso, se questiona diante de suas próprias atitudes contraditórias. Quando o dono da loja exige que Kenan o defenda contra pessoas que o criticam, Samet toma o lado do colega, e argumenta que não é preciso sempre reagir. As pessoas criticam o lojista por ele não tomar partido na política, justamente o que Nuray reclama de Samet, na acalorada discussão entre eles num jantar a dois. Contraditoriamente, ao tomar partido e se envolver a favor de uma aluna, esta o acusa de conduta inadequada.
Questionamentos
Tudo isso leva ao questionamento do protagonista em relação à realidade. Esta depende do ponto de vista. Os quadros que Nuray pinta e exibe em sua casa, por exemplo, são a realidade filtrada por sua percepção. Da mesma forma, são percepções as fotos que Samet tira das pessoas do vilarejo, e que aparecem na tela de vez em quando. A atenção que ele dá à aluna, por sua vez, é mal interpretada por ela.
A música está ausente na maior parte das cenas. E o uso de planos longos, junto com recursos não invasivos como a câmera fixa e o plano/contraplano (mesmo aquele com a parte de trás da cabeça do personagem desfocada à frente), confirma a busca de um retrato naturalista, mais próximo do real. Eis que, num movimento surpreendente, Samet abre uma porta e sai para os bastidores do cenário, um local frio e branco que se opõe ao escuro com iluminação aconchegante da casa de Nuray. Na mesma sequência, Samet entra no banheiro e toma um Viagra antes de ir para a cama de Nuray. Como ele própria afirma depois da relação sexual, ele temia estranhar a falta de uma perna dela. Um pouco depois, a música de fundo surge e mostra a neve caindo em câmera lenta no para-brisas do carro.
Nesses trechos, Nuri Bilge Ceylan convida o público a entrar nessa discussão sobre a realidade. Faz isso ao quebrar a quarta parede, justo numa cena de enorme naturalismo. Da mesma forma, reforça ao distanciar o romantismo com uma dose de realidade simbolizada pelo Viagra. Depois, recorre a recursos que afastam o naturalismo, como a música não-diegética e o slow motion.
A verdade de cada um
E, lembrando ainda que o enredo de Ervas Secas trata, de várias maneiras, de um posicionamento em relação à realidade. As pessoas devem se envolver nas lutas políticas? O professor pode ter relações afetivas com seus alunos? O ensino no vilarejo é uma realidade ou apenas uma preparação dos professores para a capital, já que esses alunos do interior acabarão como trabalhadores rurais que nem usarão esse aprendizado, como braveja um desesperançado Samet? Indo além, o que é real, o verão da liberdade ou o inverno do isolamento? A mise-en-scène ou o estúdio? O quadro? A pintura?
Fruto de seus questionamentos, a narração final de Samet confessa sua desesperança. Sua aluna Sevim (Ece Bagci) era justamente seu sonho, sua esperança que voou para longe diante do abismo entre os dois, cada um com sua própria verdade.
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Ficha técnica:
Ervas Secas | Kuru Otlar Üstüne | 2023 | Turquia | 197 min | Direção: Nuri Bilge Ceylan | Roteiro: Akin Aksu, Ebru Ceylan, Nuri Bilge Ceylan | Elenco: Deniz Celiloglu, Merve Dizdar, Musab Ekic, Ece Bagci, Erdem Senocak.
Distribuição: Imovision.
Assista ao trailer aqui.
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