Se em seu canônico “A Evolução da Linguagem Cinematográfica”, André Bazin faz um paralelismo da história estética do cinema com a história da maturação humana (infância, juventude, vida adulta) optei por uma abordagem parecida em relação ao cinema de John Cassavetes. Como apontado em minha crítica de Sombras (1959), a relação do americano com a câmera ganha maturidade apenas com Faces (1968).
Depois de sua estreia como diretor de cinema, John Cassavetes fez A Canção da Esperança (1961) e Minha Esperança é Você (1963), ambos menos inspirados que seu primeiro filme – e com títulos horríveis para o mercado brasileiro. Vem então Faces, seu quarto longa-metragem, tema desta crítica.
Na metade das escadas
O filme começa com o protagonista Richard Forst (John Marley) descendo as escadas. É de forma deveras abrupta que o longa se inicia, já no meio de uma ação. Não vemos Forst começar a descer, simplesmente estamos na metade das escadas. Essa escolha é de uma coerência ímpar em relação ao resto das escolhas expressivas de Cassavetes na obra: o longa começa ali, mas a vida do personagem não.
Toda a abordagem de Cassavetes nesse longa se adequa a essa discreta decisão: estamos sempre correndo atrás. Temos uma encenação (mise-en-scène) tão aberta que existe um certo descontrole possibilitador inerente em cada movimento, cada gesto, cada fala. O elogio do descontrole (ou melhor, da falta de um controle total sobre o plano) é um clichê da crítica, mas seria desonesto fugir disso apenas por capricho.
Decupagem e jam session
Na cena que abre o filme, vemos o protagonista passar por uma espécie de pitching, onde o título Faces já começa a se justificar. O número de closes é absurdo, mas é interessante notarmos que no quesito decupagem, essa sequência inicial se distancia um pouco da que veremos na sequência – que figura entre minhas preferidas do cinema americano em geral.
Na primeira sequência, é desconfortável acompanhar o corte rápido que reina, indo de plano fechado a plano fechado. Os olhares se entrecruzam, se observam. Se o quadro é amplificador de tensões (como veremos a seguir) os olhos nessa primeira passagem são carregados de energia expressiva.
Já na casa do personagem interpretado por Marley, os planos longos predominam, com uma lente focal muito curta, a câmera acompanha os personagens através de panorâmicas simples e eficazes que apenas seguem e registram a ação (frequentemente se diz que a estética do filme é inspirada pelo cinema verdade [Cinéma vérité] francês). O jogo com os limites do quadro é constante, com entradas e saídas (e até entre-entradas e entre-saídas).
Uma jam session é uma reunião informal de músicos para tocar por prazer e diversão, na qual o improviso é predominante. Se toca sem saber exatamente o que vem a seguir, sem ensaio prévio, os músicos podem ter até um direcionamento, uma ideia de para onde estão indo – porém não sabem exatamente como chegarão lá. Pois Faces tem um protótipo de jam session cênica.
Imagem-Afecção e Voltagem Dramática
A imagem-afecção em Deleuze é a que ocupa o desvio entre uma ação e uma reação, o que absorve uma ação exterior e reage por dentro. Basicamente, trata-se do close-up, do plano fechado na rosticidade (não necessariamente no rosto humano, mas principalmente nele – também é possível fazer esse tipo de imagem de outras partes do corpo, até mesmo de objetos inanimados).
Faces tem como principal qualidade a capacidade de unir a liberdade de encenação a esses momentos de imagem-afecção. A voltagem dramática presente nas cenas de discussão é fruto da relação da cena com a câmera, da câmera com os atores, dos atores entre si, tudo em alinhamento (sob coordenação de John Cassavetes) para gerar um dos filmes independentes mais potentes já realizados em solo americano.
Texto escrito pelo crítico e universitário de cinema Enrico Mancini, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
Faces | Faces | 1968 | 2h10 | EUA | Direção e roteiro: John Cassavetes | Elenco: John Marley, Gena Rowlands, Lynn Carlin, Seymour Cassel, Fred Draper, Val Avery, Dorothy Gulliver.