Beber, assim como fumar, geralmente era visto como um hábito descolado nos filmes. Farrapo Humano, de Billy Wilder, arrebenta qualquer glamour em relação ao álcool que o cinema criara ao longo dos anos. Embora bem mais arrebatador do que Nasce uma Estrela (1937), de William A. Wellman, não foi capaz de quebrar essa tendência – ainda hoje o cinema e a música incentivam o consumo de bebidas – mas abriu as portas para obras contundentes que caminham em sentido contrário. Despedida em Las Vegas (1995), de Mike Figgis, vem à mente como um desses títulos.
O último fim de semana
Farrapo Humano se passa em apenas um fim de semana, como o nome original do filme indica. O alcoólatra Don Birnam (Ray Milland) se prepara para viajar com seu irmão Wick (Phillip Terry) após alguns dias de abstenção. Além do irmão, Don também conta com a namorada Helen St. James (Jane Wyman) como apoiadores para que ele se livre do vício. Mas a doença o leva a constantemente tentar enganá-los. Como agora, no início do filme que revela que ele esconde uma garrafa de uísque pendurada por um cordão do lado de fora da janela do apartamento. Don acabará não viajando nesse fim de semana, que representará a sua descida até o fundo do poço, sendo o ponto mais baixo um apelo ao crime.
Para não se restringir a esses três dias infernais, o enredo inclui o flashback do início do seu relacionamento com Helen, que ele conta para o barman. Foi há três anos, mas ele já era um viciado. O inteligente roteiro, que Billy Wilder escreveu com Charles Brackett, mostra com realismo o que acontece com um dependente. Nas lembranças, Don passa por possíveis motivos para começar e continuar a beber. Ora é o bloqueio criativo que o impede de ser um escritor como alega ser, ora a falta de confiança por ser de uma classe social inferior à de Helen. Na verdade, são desculpas para a sua doença que só pode ser curada com uma abordagem dolorosa – como sugere o enfermeiro da ala dos alcoólatras.
Construção de imagens
Por outro lado, Farrapo Humano demonstra o quão talentoso é Billy Wilder na composição de imagens, e não só na elaboração do roteiro. Vários exemplos no filme comprovam isso.
Por exemplo, Wilder mostra que o protagonista bebeu demais através das marcas circulares que os copos de uísque deixam no balcão. A expressão “afogar as mágoas nas bebidas” ganha uma representação na tela quando a câmera se aproxima de um copo até quase entrar nele. Na cena da ópera, os olhos de Don acompanham os copos e as garrafas de bebida alcoólica que fazem parte da encenação no palco. Depois, no trecho em que ele está desesperado por uma bebida e revira o apartamento, o enquadramento coloca o personagem em primeiro plano e o lustre (onde ele escondeu a garrafa) no fundo do quadro. Em relação à fotografia, o tom se torna muito escuro na parte final.
Farrapo Humano é quase um filme perfeito. Não é porque, aos olhos de hoje, sua conclusão se curva à pressão de um final esperançoso. Era a exigência da época – atualmente o inverso se tornou a norma.
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Ficha técnica:
Farrapo Humano | The Lost Weekend | 1945 | 101 min. | EUA | Direção: Billy Wilder | Roteiro: Charles Brackett, Billy Wilder | Elenco: Ray Milland, Jane Wyman, Phillip Terry, Howard da Silva, Doris Dowling, Frank Faylen, Mary Young.