“Festim Diabólico”: Um desafio técnico para Hitchcock
Alfred Hitchcock aproveitou a oportunidade de levar a peça teatral de Patrick Hamilton ao cinema para se desafiar tecnicamente. Ele o filmaria como um longo plano-sequência, ou seja, uma única tomada sem interrupções, justamente como o público o assistiria no teatro. E é esse o formato de “Festim Diabólico”. Exceto por algumas emendas necessárias, porque cada segmento podia durar no máximo o equivalente à quantidade de fita que cada rolo de filme podia conter. Essas emendas, um pouco forçadas, muitas vezes terminam se aproximando das costas de algum personagem e retomam desse ponto para se afastar até uma tomada mais ampla.
A fim de que o filme não se resumisse somente a uma experiência técnica, Hitchcock se preocupou em escancarar logo no primeiro quadro após os créditos iniciais o elemento que manterá o suspense durante toda a estória. A face agonizante do jovem David aparece em close up, sendo estrangulado com uma corda por seus colegas de universidade Brandon (John Dall) e Philip (Farley Granger). Morto a sangue frio, eles escondem o corpo dentro de um baú na sala onde estão. O apartamento pertence a Brandon, que declara sua felicidade por conseguir o crime perfeito. Para ele, o evento é apenas um jogo, baseado na sua crença de que mentes superiores não devem se importar com as inferiores, como a de David. Seu companheiro no crime, contudo, sofre desde logo o remorso pelo ato criminoso.
Uma festa perversa
Para apimentar ainda mais sua diversão, Brandon cobre o baú, com o cadáver dentro, transformando-o em um buffet para a festa que acontecerá logo em seguida, cuja perversa lista de convidados inclui o pai, a tia (que aparece no lugar da mãe) e a amiga de David, além do inteligente professor dos rapazes. Este, Rupert Cadell (James Stewart), um mestre em deduções lógicas, representa o maior risco para os jovens assassinos, porque eles sabem que a trama que eles planejaram para o crime perfeito se baseou em suas teorias. Além dos convidados, está presente também a empregada de Brandon, ela também muito esperta em relação a observar o comportamento do patrão e seu companheiro.
Todos os personagens são bem construídos, e os diálogos mantêm a atenção do espectador. Este se entretém o suficiente para não se sentir enclausurado no ambiente único em que se passa o filme. Há até pitadas de comicidade, fruto das interpelações de Mrs. Atwater (Constance Collier), a tia da vítima. Mas os melhores momentos são aqueles em que Rupert vai colando as pistas para primeiro desconfiar e depois desvendar o crime.
Sequências em destaque
Merece destaque a sequência em que a cama fica fixa, ao lado do baú, enquadrando a movimentação da empregada Mrs. Wilson (Edith Evanson). Ela vai e volta da sala para o outro cômodo, retirando o que caracterizava o buffet para trazer livros que ela pretende guardar dentro do móvel. O diálogo dos outros personagens continua entusiasmado, mas o que importa é o crescente suspense em torno da possibilidade de abertura do baú e da descoberta do cadáver.
O recurso de sair de uma tomada ampla para se aproximar de um detalhe é usado comumente por Hitchcock, sempre num momento crucial da trama. Aqui, ele o utiliza quando o personagem de James Stewart retira uma cigarreira de seu bolso e a coloca em cima do baú, para justificar sua volta ao apartamento. O que mais impressiona é o senso de tempo do diretor. Primeiro, porque a trama acontece praticamente em tempo real. Segundo, porque, por serem planos-sequências, tudo teve que ser perfeitamente cronometrado e ensaiado antes de filmado. Para um perfeccionista como Hitchcock, uma quebra de paradigma enorme.
Hitchcock também emprega de forma magnífica o contraplano enquadrando o rosto de James Stewart enquanto ele observa a discussão dos dois amigos. Na cena, sua expressão demonstra como a certeza de que algo sinistro aconteceu cresce nele. Stewart, aliás, apesar de seu talento, foi uma escolha que retirou um elemento extra do filme, que era mais evidente no original britânico do que na versão norte americana. Em outras palavras, implicitamente, os dois companheiros do crime eram homossexuais e o ex-professor também.
Ficha técnica:
Festim Diabólico (Rope, 1948) 80 min. Dir: Alfred Hitchcock. Rot: Arthur Laurents. Com John Dall, Farley Granger, James Stewart, Edith Evanson, Douglas Dick, Joan Chandler, Cedrick Hardwicke, Constance Collier, Dick Hogan.