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Diário de Gramado | dias 5 e 6 | por Sérgio Alpendre

O mar de luzes dos mal-educados que acendem seus celulares durante o filme continua forte, a ponto de Roger Lerina, no papel de mestre de cerimônias, reforçar o pedido para desligarem os badulaques. É um vício terrível que atormenta e desconcentra quem quer prestar atenção ao filme.

Hoje o frio começou a ir embora da cidade e o calor no palácio onde são exibidos os filmes ficou além do suportável, a meu ver. A concentração precisa ser maior, logo, cada sessão cansa mais do que em condições mais favoráveis.

Dia 5

Foi o dia do segundo longa da competição gaúcha, Memórias de um Esclerosado, de Thais Fernandes. Belo sobretudo nos momentos em que se torna mais ousado, caindo um pouco quando vai para o registro do cotidiano. De todo modo, é mais um bom longa gaúcho, confirmando a boa fase do cinema no estado.

Na sessão noturna, tivemos a estreia da atriz Dira Paes na direção, com um filme intitulado Pasárgada, dedicado a John Boorman, com quem filmou A Floresta das Esmeraldas (1985), e Walter Lima Jr, com quem filmou Ele, o Boto (1987), seus dois primeiros filmes como atriz, ainda na adolescência.

Curiosamente, Pasárgada não parece um típico primeiro filme no sentido de que não vemos um acúmulo de ideias, mas uma única ideia trabalhada com um tempo mais lento, algum misticismo piegas e uma trama resolvida em notebook que poderia ter sido mais trabalhada, ou não trabalhada num notebook. Ou seja, no lugar do acúmulo de ideias, tem acúmulo de gorduras. Um belo momento: quando o ajudante contratado para atrair pássaros começa a assobiar, deixando a personagem de Dira Paes ao mesmo tempo interessada e curiosa com a desenvoltura do ajudante no assobio.

Dia 6

Dia de três longas e de uma longuíssima apresentação, que, como foi do terceiro, terminou por cansar parte da plateia, que desistiu do filme porque iria terminar num horário em que os restaurantes estariam fechados. É prejudicial ao próprio filme demorar tanto na apresentação. A não ser para quem estava ali para ver só aquele filme, jamais para quem vinha de um filme longo à tarde e outro longo imediatamente antes, além de uma linda homenagem à Vera Fischer. Vamos aos três longas do dia.

A Transformação de Canuto, de Ariel Kuaray Ortega e Ernesto de Carvalho, foi o surpreendente longa gaúcho de hoje. Filmado na região das Missões, que cobre parte do Rio Grande do Sul e parte da Argentina, com personagens indígenas e alguns poucos brancos e dirigido majoritariamente por um indígena, foi também a sessão mais esvaziada do festival, o que dá uma noção do preconceito da cinefilia (e não só a local). Em um momento, um dos três indígenas que apresentavam o filme no palco titubeou e já começaram a bater palmas, como se quisessem expulsá-los dali. Mais tarde, a equipe gigantesca do filme da Eliane Caffé falou por muito mais tempo e não houve aplausos apressadores. A comunidade cinematográfica brasileira é progressista até a segunda página.

Sobre o filme, basta dizer que o tripé pontuação com música e dança, rituais e senso de comunidade me lembrou o cinema de John Ford, embora formalmente o filme seja um produto mais bem acabado do projeto Video nas Aldeias, com a sensibilidade indígena sensivelmente dominadora. Martírio havia me encantado na época, mas na revisão caiu. Este filme me soou mais forte justamente porque há uma notável indicação de estilo, que não me parece vir tanto da ajuda de Lucrecia Martel e Marcelo Pedroso na montagem, embora não sejam ajudas desprezíveis.

Os dois longas da noite decepcionaram, principalmente porque esperava mais dessas duas diretoras, que já fizeram bons filmes.

Cidade; Campo, de Juliana Rojas, é bifurcado como As Boas Maneiras, mas a diretora não resolve muito bem a segunda parte do filme. Talvez a pandemia tenha atrapalhado mais do que a produtora Sara Silveira e a diretora disseram na apresentação. Na primeira parte, Joana sai de sua cidade, que ficou submersa com o estouro de uma barragem, e vai tocar na casa da irmã, em São Paulo, trabalhando num aplicativo de diaristas. Mais direta, essa parte tem alguma força na maneira que mostra a união das mulheres contra machistas e assediadores. A segunda parte é uma trama de fantasmas não muito convincente, nem sedutora. Uma pena, pois o risco assumido em As Boas Maneiras não se repetiu. Parece que a diretora achou que já estava ousando demais, quando na verdade não ousou praticamente nada.

O segundo longa, Filhos do Mangue, de Eliana Caffé, foi prejudicado por uma apresentação exageradamente estendida. Filipe Camargo acorda desmemoriado e afrontado por todos os moradores da aldeia de pescadores, onde ele é uma espécie de atravessador e trambiqueiro, envolvido com tráfico sexual de adolescentes e outras tramoias, além de bater em sua esposa. Ele ainda teria roubado o dinheiro deles. Uma trama simples, mas mal levada na direção e na montagem, é salva do desastre por duas cenas com crianças. A primeira, mais forte, quebra o registro naturalista pela própria dificuldade de se atingir esse mesmo registro com as crianças, o que fez muito bem à cena, que surge como um alívio. A segunda, mais ouvimos do que vemos as crianças em seus comentários enquanto o protagonista tenta construir uma espécie de abrigo na praia.

Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.

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