Em sua maior parte, Filhos de Istambul se apresenta como um dramalhão com forte apelo sentimental. Porém, no capítulo final, o filme arrisca uma revelação surpresa.
O protagonista é Mehmet, um homem órfão que sobrevive com um pequeno negócio de reciclagem, reunindo e vendendo material coletado nas ruas. Quem está sempre ao seu lado é seu melhor amigo Gonzi, inclusive quando Mehmet precisa correr para o hospital porque seu rim está comprometido. Gonzi faz o tipo malandro de bom coração, que vive se arriscando para se dar bem. Boa parte do filme investe neste tom otimista, mostrando que, mesmo sendo recicladores de materiais, eles podem ser felizes e ainda guardar um dinheiro para realizar seus sonhos.
Felicidade na pobreza
Nesse sentido, a direção de Can Ulkay privilegia as cores fortes, a câmera em constante movimento, e tomadas aéreas que apresentam a cidade de Istambul como num cartão postal. Mas, com tudo plasticamente tão perfeito, em uma história que se passa nas favelas, caímos na tentação de criticar o que parece ser a glamourização da miséria. Ou seja, é como se Filhos de Istambul tentasse encobrir a dura vida da classe pobre na cidade turca.
Enfim, voltando à trama, Mehmet encontra um menino, Ali, escondido num saco de coleta em seu depósito. Como o garoto sofre agressões do padrasto, sua mãe o mandara embora para salvá-lo. Logo, Mehmet se afeiçoa a ele com uma intensidade irracional. Chega até a agredir o amigo Gonzi quando este o contraria em relação ao menino Ali. Então, isso vai num crescendo até assumir uma atitude autodestrutiva, quase suicida.
Por fim, Filhos de Istambul apresenta uma surpreendente revelação. Para começar, o visual se torna mais cinzento, e o comportamento de Mehmet mais alucinado. Dessa forma, essa virada narrativa finalmente desencobre a fantasiosa percepção de que tudo era uma maravilha para Mehmet, Gonzi, e os demais órfãos meninos que trabalham na coleta.
Spoilers adiante!
O filme trabalha no arriscado desenlace que mostra que tudo o que o público viu até então, não era real. Pode funcionar bem, vide O Sexto Sentido (The Sixth Senth, 1999) e Os Outros (The Others, 2001), desde que o filme sobreviva a uma revisão. Não é o caso aqui.
A surpresa que o filme reserva é que o menino não existe, é apenas fruto da imaginação de Mehmet. Ou seja, Ali representa ele mesmo quando era criança e sua mãe o tirou de casa. Apesar de ela agir assim para deixá-lo longe do padrasto, ele nunca se recuperou desse trauma. Agora, perto da morte (ele precisa de um transplante de rim que nunca acontece), ele tenta fazer as pazes com seu passado. Do lado psicológico, funciona. Mas, não sobrevive a um escrutínio em relação às aparições do menino imaginário, principalmente quando Mehmet e Ali estão ao redor de pessoas desconhecidas ou de ações físicas.
Filhos de Istambul faz parte da recente leva de dramas turcos que, se não são obras-primas, possuem um apelo sentimental muito forte e produção de primeira linha. Como exemplos, podemos citar Milagre na Cela 7 (2019) e Mucize (2015). Mas, se agradam com facilidade, se sujeitam a críticas por enfeitarem demais a realidade dura da população menos favorecida, como acontece aqui com as telenovelas da Globo.
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Ficha técnica:
Filhos de Istambul (Kagittan Hayatlar) 2021. Turquia. 96 min. Direção: Can Ulkay. Roteiro: Ercan Mehmet Erdem. Elenco: Çagatay Ulusoy, Emir Ali Dogrul, Ersin Arici, Turgay Tanülkü, Selen Öztürk.
Distribuição: Netflix.