Animais falantes? Nada disso, como em Minúsculos (2013), e na própria natureza, bichos não falam na animação Flow, do diretor letão Gints Zilbalodis. Essa opção desafiadora, que remete ao cinema mudo, abre a possibilidade de interpretações alternativas, que o filme abraça para enriquecer o seu conteúdo.
Para começar, o longa não explica por que, mas uma enorme inundação toma conta das terras onde vive o gato, protagonista da história. Aparentemente, o seu dono abandonou a casa na floresta às pressas, deixando o seu pet para trás. Não seria impossível, porém, imaginar que ele morreu. O que importa é que a água está subindo rapidamente. Em pouco tempo, cobre a casa onde o gato mora, as árvores ao redor, e até uma gigantesca estátua de madeira (na forma de um gato, provavelmente ele próprio, esculpido pelo seu dono).
Quando tudo parece perdido para o gato, surge um bote à deriva, que servirá de transporte para ele e outros animais com os quais ele precisa aprender a conviver. Um cão, um macaco, um pássaro, uma capivara, aprendem a ajudar uns aos outros, até se arriscando para proteger o companheiro. Dentro de uma mesma espécie, aliás, há os que são bons e os que não são. Assim, o pássaro e o cão do grupo precisam confrontar os outros das suas espécies. Portanto, manter a individualidade é uma qualidade valiosa. Materialismo em exagero, também, pode ser prejudicial, bem como o interesse pelas futilidades.
De evento a evento, surgem oportunidades para várias analogias com o comportamento humano e com a realidade social universal ou de um determinado tempo e espaço. Com isso, o filme se movimenta, e o fato de não querer entregar todas as respostas gera interesse cada vez maior. E, facilmente, o espectador se vê torcendo pelos personagens, em especial pelo gato.
Animais são animais
Flow evita que os animais se comportem como pessoas. São raros os trechos em que isso acontece, e geralmente com o macaco, o que é até mais natural. Essa apelação, tão comum na animação, costuma infantilizar o filme, o que o diretor Gints Zilbalodis não deixa acontecer. Resulta daí um filme sério, mas leve, que prende a atenção pelas aventuras de sua trama, sempre provocando elucubrações sobre prováveis erros da humanidade que podem ter provocado esse desastre ecológico.
Justifica-se o filme terminar com um final aberto, pois os erros humanos são vários, e cada espectador pode pensar num ou mais deles. Além disso, não é de se descartar a destruição total para começar tudo de novo, desta vez sem a espécie humana, ou mesmo sem animais.
Não faltam adjetivos para Flow, um dos melhores filmes de animação deste século. É original, inteligente, emocionante, provocador.
___________________________________________
Ficha técnica:
Flow | 2024 | 85 min. | Letônia, Bélgica, França | Direção: Gints Zilbalodis | Roteiro: Matiss Kaza, Gints Zilbalodis.
Trailer: