Em “Frenesi”, Hitchcock abraça a brutalidade dos anos 70
Alfred Hitchcock, apesar de sua genialidade, fazia parte do cinemão clássico hollywoodiano e enfrentava dificuldades no final dos anos 60 e início dos 70. O mundo estava mudando, o idealismo hippie era um sonho acabado, massacrado pela realidade cruel marcada por eventos trágicos como os assassinatos de Malcolm X e Martin Luther King, e a guerra do Vietnã. Os filmes no formato clássico perdiam público para produções mais arrojadas inspiradas pela nouvelle vague, cinemas de outros países, e a cena independente do próprio EUA. Hitchcock sentiu isso na pele, com o fracasso de “Cortina Rasgada” (1966). “Frenesi” mostra o diretor reagindo a essa situação.
“Frenesi” é um filme B. Não há atores famosos no elenco – afinal, Paul Newman e Julie Andrews não haviam ajudado a salvar “Cortina Rasgada”. As filmagens aconteceram em locações e estúdios em Londres, para reduzir os custos. E, mais importante, Hitchcock parece livre para experimentações, longe das exigências dos grandes estúdios de Hollywood. Por isso, está mais brutal, apresentando cenas cruas de assassinato, e expondo cadáveres friamente. Há até cenas de nudez em um filme de Hitchcock! Sem contar ainda o seu tradicional humor britânico, mais evidente aqui porque ele filmou na Inglaterra, onde nasceu.
Serial killer
A restrição orçamentária, aliada à obsolescência resultante dos avanços tecnológicos, tornou a abertura do filme incômoda. A câmera está pendurada em um helicóptero para uma tomada de Londres vista do céu, avistando de longe o rio Tâmisa (Thames, no original). Ela vem, em voo descendente. e passa pela Tower Bridge até chegar a um grupo de pessoas ao redor de um político discursando sobre a despoluição do rio. O incômodo surge automaticamente para o espectador atual devido à facilidade de se filmar esse tipo de cena com um drone, resultando em uma câmera muito mais estável.
No entanto, logo o filme apresenta-se contraditoriamente moderno, ao abordar um tema ainda considerado inovador no cinema: o serial killer. Assim, vemos um corpo de uma mulher boiando no rio. Ele desvia a atenção do aglomerado de pessoas, e um observador grita que ela é mais uma vítima do assassino da gravata.
Após vermos o corpo estrangulado com uma gravada no pescoço, há um corte para Richard Blaney (Jon Finch), arrumando o nó de sua gravata em frente a dois espelhos, o que divide sua imagem. Depois, o filme mostra esse personagem sumindo rapidamente da conversa com o amigo Robert Rusk (Barry Foster), quando este ia apresenta-lo a um policial. Um pouco mais tarde, ele trata de forma grosseira o balconista de um bar.
Em seguida, Blaney tem uma explosão de raiva por não ter apostado no cavalo vencedor indicado por Rusk. Além disso tudo, ele grita com sua ex-mulher, e a secretária dela ouve a discussão. Dessa forma, Hitchcock planta as pistas que levam o espectador a deduzir que ele é o assassino em série.
Assassinatos
O diretor não acreditava em whodunits (estórias para se descobrir quem é o culpado), preferindo criar o suspense a partir do conhecimento por parte do espectador a respeito de quem é o assassino. Por isso, ele logo desconstrói a dedução do espectador ao mostrar Rusk assassinando a ex-mulher de Blaney. Porém, no filme todos suspeitam que Blaney é o serial killer. Aliás, para piorar as coisas para o falso acusado, o assassino escolhe outra pessoa que também está no círculo de relacionamento de ambos para ser a próxima vítima.
Assim, o filme acompanha dois assassinatos. O primeiro, da ex-mulher de Blaney é chocante, porque mostra todo o ato criminoso, desde a abordagem amistosa, até o estupro e o estrangulamento. A nudez nessa cena não é gratuita, está lá para acentuar a violência sexual. A descoberta da vítima pela secretária revela a liberdade de ousar que o orçamento B proporcionou a Hitchcock. Nesse sentido, ele deixa na tela um plano muito longo mostrando a porta do escritório onde elas trabalham. Nada acontece por um bom tempo, até que um grito assustador quebra o silêncio e revela a descoberta.
O toque de Hitchcock
Já o segundo assassinato em “Frenesi” é puramente cinematográfico. Como o crime anterior foi mostrado em detalhes, agora não haveria motivo para levar ao espectador a mesma experiência. Portanto, Hitchcock inteligentemente usa uma elipse. Uma frase usada pelo assassino na morte anterior é repetida na abordagem da próxima vítima. Então, quando a porta do apartamento de Rusk se fecha, já sabemos o que acontecerá. Em seguida, a câmera se afasta da porta, desce as escadas como se fosse já a alma da pobre garota, até sair na rua, onde o movimento cotidiano encoberta o que acontece lá dentro. Os detalhes horripilantes desse ato serão mostrados em cortes rapidíssimos em um flashback de Rusk quando ele recupera seu broche que estava no corpo da vítima, na sequência inesquecível do caminhão com os sacos de batatas onde se encontrava o cadáver.
A audácia de Hitchcock também aparece na cena do tribunal. Fugindo do clichê, o julgamento é acompanhado através da janela da porta, onde um policial está de plantão. Quando ele abre a porta, ouvimos o juiz declarando o que está em pauta naquela sessão. Com a porta fechada, vemos Blaney lá dentro, mas não se pode ouvir nada. Finalmente, quando o policial abre novamente a porta, para ver o que se passa no interior da sala, a sentença é proferida pelo juiz de forma audível.
Um pouco do humor inglês
O diretor ainda brinca com as expectativas do espectador, quando coloca uma cena do jantar na casa do inspetor da polícia. Há humor na situação em questão, porque a esposa, que o inspetor anteriormente disse que estava fazendo um curso de chef de cozinha, prepara umas comidas bem estranhas para o marido, que não gosta de nada, mas finge estar apreciando. Em meio às cruéis cenas de assassinato, o espectador se incomoda com esse aparente desvio de foco na estória. Acontece que essa cena fará sentido posteriormente, quando, em uma situação semelhante, o inspetor desvendará os crimes. O espectador entende, então, o motivo da cena de jantar anterior.
Em “Frenesi”, seu penúltimo filme, Hitchcock provava que possuía ainda muita criatividade para dirigir, principalmente quando nenhum estúdio estava delimitando seus poderes. Afinal, já fizera isso em outro célebre filme B: “Psicose” (1960).
Ficha técnica:
Frenesi (Frenzy, 1972) 116 min. Dir: Alfred Hitchcock. Rot: Anthony Shaffer. Com Jon Finch, Barry Foster, Barbara Leigh-Hunt, Anna Massey, Alec McCowen, Vivien Merchant, Billie Whitelaw, Clive Swift, Bernard Cribbins, Michael Bates, Jean Marsh, Madge Ryan.
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