Em Fúria Primitiva, o ator de sucesso Dev Patel comete erros de estreante na direção de seu primeiro longa. Autor também da história, co-roteirista e protagonista, Patel quis colocar ideias demais dentro de um só filme.
Talvez como resposta a Danny Boyle, que o dirigiu em Quem Quer Ser um Milionário? (Slumdog Millionaire, 2008), Dev Patel aqui se apropria do estilo visual deste cineasta britânico. Ou seja, muita movimentação de câmera, montagem ágil, e uso de vários planos com diferentes ângulos. Na segunda parte, essa influência torna o filme emocionante, mas na primeira, muitas vezes cai no maneirismo meramente decorativo. Por exemplo, a sequência do furto da carteira, que passa rapidamente de mão em mão para despistar… ninguém! Faltou aí um plano, pelo menos, com uma pessoa correndo atrás do objeto que foi levado.
Ideias demais
Na trama, o personagem de Dev Patel viu sua mãe ser assassinada covardemente pelo delegado de polícia Rana, numa ação de desocupação violenta de uma área na mata, a mando do falso líder espiritual Baba Shakti. Agora, ele tenta se infiltrar no hotel de luxo da chefe do crime Queenie, para executar sua vingança. Enquanto isso, ganha a vida como Kong, um competidor mascarado que sempre entrega suas lutas, clandestinas, por dinheiro.
Da mesma forma, como efeito de ideias demais para um filme só, estão os simbolismos rasos. No hotel, o protagonista adota o nome Bobby (adotaremos esse nome neste texto), que é uma marca de alvejante. Esse produto, eficaz na limpeza, já tinha sido mencionado por ele quando fez seu pedido de emprego para Queenie. Na parte final do filme, Bobby lava sua máscara de macaco em alvejante, antes de iniciar seu inapelável processo de limpeza para se vingar da corja que levou sua mãe à morte.
Outra metáfora simplória é a água imunda do rio da cidade, onde ele cai após ser mortalmente ferido. Após um corte seco, entra a imagem de sua infância num riacho límpido na floresta onde vivia com a mãe até o delegado Rana tocar fogo nas suas casas para ali construir uma fábrica pertencente a Baba Shakti.
John Wick indiano
Por outro lado, Fúria Primitiva não esconde a influência de John Wick, que é até mencionado na trama. Mas Bobby só ganha a habilidade similar à de Wick na metade final da história, justamente quando o filme melhora. Na primeira parte, o protagonista não é nem um grande lutador nos ringues clandestinos, nem um adversário à altura para enfrentar o delegado Rana, quando consegue a oportunidade de se vingar.
O próprio diretor Patel tampouco está preparado para exercer sua função, nesta primeira parte. Como não pode mostrar um herói poderoso, os combates não empolgam. O roteiro também está perdido, dá voltas e voltas para desenrolar esse plano de vingança visivelmente capenga. Não fica claro se a overdose que leva o inimigo ao banheiro foi acidental ou se foi provocada pelo protagonista. E, ademais, deixa dúvidas sobre a participação do personagem Alphonso, o malando que, de forma não muito convincente, ajuda o herói por dinheiro, abrindo mão de seu trabalho para Queenie, que rende muito mais. Por fim, é inexplicável que Alphonso entre no seu carro durante a fuga de Bobby, desta forma assumindo sua participação no atentado.
A virada
Contudo, o espectador que resistir a essa primeira parte sairá recompensado do cinema. Isso porque o enredo melhora quando um grupo de pessoas trans, perseguidas pelos mesmos inimigos de Bobby, salva o herói da morte certa. E o processo de curas dá origem aos poderes aumentados do protagonista. É inteligente deixar a opção de acreditar numa solução espiritual ou racional. O herói inala um pó de uma árvore especial no templo onde o grupo está, e em seguida seu peito se abre e inicia uma sequência de fantasia, junto com imagens justapostas dele com ilustrações do deus macaco Hanuman. Mas, o filme também mostra o treinamento de Bobby, que aprimora suas habilidades ao aprender a golpear com ritmo, acompanhando os tambores de um dos membros dessa comunidade – uma cena melhor imaginada do que realizada, mas ainda assim intrigante.
Após o treinamento, a coisa finalmente engrena. Bobby volta ao ringue, desta vez, não para entregar a luta, mas para derrotar o adversário habitual, e um lutador gigante, numa clara referência a Bruce Lee em Jogo da Morte (Game of Death, 1978). Então, chega o momento do grande embate final. Patel, como ator e diretor, pode finalmente se dar a liberdade de tornar o seu personagem tão letal quanto John Wick. Assim, Bobby invade o hotel de luxo liquidando todos os oponentes a rodo. As cenas de ação são emocionantes e com um visual caprichado. Especial destaque vai para os trechos com as silhuetas dos lutadores à frente de um fundo iluminado. Tem o senão da intervenção surpresa da prostituta que se afeiçoa a Bobby. Um relacionamento breve demais (eles nem chegam a fazer sexo, como costuma acontecer) para justificar esse ato.
Melhor no trailer
Fim da sessão, bate uma frustração porque Fúria Primitiva parecia melhor no trailer. O motivo é evidente: a primeira metade do filme realmente não empolga. Dev Patel não soube o que fazer com um herói em construção, sem poderes. E essa hora inicial parece interminável, deveria ser mais enxuta, o suficiente apenas para apresentar a situação atual do protagonista antes da transformação. Depois, ganha fôlego, quando cai na pancadaria bem realizada, originada no desejo de vingança. E, secundariamente, no clamor por mudanças políticas e sociais na Índia. Mas, no geral, é uma estreia promissora de Patel na direção – com um roteiro melhor, é provável que realize um filme superior.
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Ficha técnica:
Fúria Primitiva | Monkey Man | 2024 | 121 min | EUA, Canadá, Singapura, Índia | Direção: Dev Patel | Roteiro: Paul Angunawela, John Collee | Elenco: Dev Patel, Sharlto Copley, Pitobash, Vipin Sharma, Sikandar Kher, Adithi Kalkunte, Sobhita Dhulipala, Ashwini Kalsekar.
Distribuição: Diamond Filmes.
Estreia dia 22/05/2024 nos cinemas.
Assista ao trailer aqui.