O drama alemão Garota Inflamável (Stillstehen) toca nos limites que separam a sanidade da loucura, através de suas duas protagonistas.
Julie
Julie (Natalia Belitski) perdeu seu pai, vítima de um enfarto, e depois sua mãe, que se suicidou quando ela tinha apenas 16 anos. Agora adulta, ela prefere não fazer nada. “Ficar imóvel”, como indica o título original do filme. Por isso, não trabalha, nem estuda e não se relaciona com ninguém. Emblematicamente, costuma sempre usar luvas de borracha, que, de certa forma, a isolam da realidade. Nas duas vezes em que ela faz sexo no longa, ela age como uma incendiária, o que só agrava a sua situação financeira, limitada à herança administrada por um tutor.
Embora Julie seja a garota do título, e seus pensamentos abram e fechem o filme, ela é uma personagem impenetrável. A trama não decifra o que se passa dentro de sua cabeça, ou seja, o que leva a seu comportamento antissocial e autodestrutivo. Não se abre cumplicidade dela com o espectador, que se mantém tão incapaz de acessá-la quanto o psiquiatra da clínica onde ela se interna regularmente.
Agnes
Por isso, a diretora e roteirista Elisa Mishto recorre à outra protagonista para criar uma conexão mais forte com o público. A enfermeira Agnes (Luisa-Céline Gaffron) também tem um problema sério: ela não consegue amar sua filha de três anos. Porém, diferente de Julie, ela se esforça. Através dela, o espectador pode entrar na história, e sentir a empatia que a outra protagonista não provoca. Mas Agnes também sofre por causa do comportamento inconsequente de Julie. Em especial, após a bela sequência de fantasia em que as duas transam imersas na água de uma piscina vazia. A magia desse momento é interrompida bruscamente quando Julie volta a agir como uma incendiária.
Assim, cabe a Agnes o papel de agente de transformação. Aliás, ela própria se transforma, pois encontra, finalmente, uma pessoa por quem se importa: Julie. Por isso, abre-lhe o caminho para que possa sair da clínica psiquiátrica, onde ficaria confinada por tempo indeterminado. E, Julie, por sua vez, dá indícios de que pode derrubar os muros entre ela e tudo o que está ao redor, ao simbolicamente tirar a luva.
Garota Inflamável peca por tornar Julie uma personagem fria e incompreensível, embora a abertura e o desfecho do filme indiquem que talvez essa não tenha sido a intenção da diretora.
Estreia nos cinemas programada para 14 de julho de 2022.
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Sobre o filme:
Garota Inflamável marca a estreia em longa de ficção da premiada curta-metragista alemã Elisa Mishto.
Mishto conta que filmou seu primeiro filme, um documentário, em um hospital psiquiátrico, durante um ano. Lá, ela presenciou pela primeira vez a condição de paralisa, quando uma pessoa não conseguia fazer absolutamente nada. “Foi aí que percebi que alguns pacientes não conseguem ser parte da sociedade, pois não compartilham de suas regras. Achei isso interessante, quase político. Além disso, se você está à margem da sociedade, você pode vê-la de uma forma diferente. Por isso, quis situar a história de Garota Inflamável numa instituição para pacientes com problemas mentais.”
E, acrescenta: “Há partes autobiográficas aqui, como a sensação de estar bloqueada, não estar aproveitando todo o seu potencial. E é um filme sobre duas mulheres com muito potencial. Mas as expectativas da sociedade e seus próprios medos as impedem de viver plenamente”, disse Mishto em entrevista ao EWA, site especializado no trabalho de mulheres no audiovisual europeu.
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Ficha técnica:
Garota Inflamável | Stillstehen | 2019 | 1h31 | Alemanha | Direção e roteiro: Elisa Mishto | Elenco: Natalia Belitski, Luisa-Céline Gaffron, Katharina Schüttler, Martin Wuttke, Jürgen Vogel, Kim Riedle.
Distribuição: Pandora.
Fonte: press release