Jeanne Dielman radicaliza a ideia de cinema construído em cima da estrutura formal. Além de ser episódio – dividido em três dias – o estilo de filmagem vai contra o clássico. Nada do tradicional plano/contraplano, dos movimentos em dolly, plano americano, close-up. A diretora Chantal Akerman mantém sempre a câmera fixa – os personagens até saem do quadro por isso – durante planos longuíssimos.
Dia 1
Propositalmente, o filme provoca um enfado extremamente incômodo. Isso é mais forte na primeira parte, correspondente ao dia 1, como diz a cartela. Nesse capítulo, Akerman mostra a rotina da dona-de-casa Jeanne. Assim, a câmera fixa a filma na cozinha, colocando as batatas na panela, captando todo o processo, sem cortes. Mas, logo se revela que ela não é apenas uma mulher do lar. No fim da tarde, ela sempre recebe um cliente para um programa. O ato é tão rotineiro que ela deixa a panela com as batatas cozinhando porque sabe que o programa dura o tempo certo para elas ficarem prontas.
O marido dela morreu, então, ela precisa do dinheiro da prostituição para sustentar a si e ao filho de dezesseis anos. Mantendo a intenção de caracterizar a monotonia dessa vida, o sexo fica em elipse. Resta apenas o longo banho com a nudez física enfatizando o voyeurismo do espectador que observa a intimidade dessa mulher como se observasse uma vizinha pela janela.
O ato da observação em sigilo se deixa atrair até pelos movimentos ausentes de qualquer malícia. O prazer do voyeur é ver sem ser visto. Mas o cinema costuma punir essa patologia – vide Janela Indiscreta (Rear Window, 1954) e tantos outros filmes dele derivados – e há sempre um crime no processo. Jeanne Dielman não foge à regra, porém, isso só acontece no terceiro dia.
Antes disso, ao fim do dia 1, há mais planos longos e fixos da protagonista, agora acompanhada do filho Sylvain (Jan Decorte), a quem se dedica como a maioria das mães. Mas há pouca conversa entre eles durante o jantar. E uma total ausência de gratidão expressa, algo que Akerman quer enfatizar.
Dia 2
O dia 2 apresenta mais atividades. Após preparar o café da manhã para Sylvain, e ele sair, Jeanne deixa o seu apartamento. Na rua, vai ao banco (ou uma lotérica), a uma sapataria, faz compras, vai a uma cafeteria. E ainda toma conta do bebê da vizinha, que ao voltar para buscá-lo fica falando sem parar (a voz é da própria diretora). Contudo, no habitual programa do fim do dia, esse cliente faz algo que não vemos. mas que a faz sair com o cabelo desgrenhado e uma expressão de descontentamento. O encontro que deu errado serve de gatilho para quebrar a rotina. As batatas cozinham demais e ela precisa descartá-las. Jeanne, que fazia tudo mecanicamente, agora parece perdida. Ela entra e sai dos cômodos do apartamento sem saber o que fazer. À noite, não consegue se concentrar em nenhuma atividade.
Dia 3
O dia 3 marca o despertar de Jeanne para sua frustração, antes sufocada pela rotina. Já desperta atordoada, e não fecha todos os botões de seu roupão. Ao longo do dia, as engrenagens não rodam mais como antes. Tenta coisas diferentes, como pegar o bebê chorão da vizinha no colo, mas só o faz chorar mais. Em vários momentos, ela fica parada, pensativa, e a câmera se mantém estática marcando todo o tempo que Jeanne fica assim. Toda sua insatisfação explode num ato violento. A última cena não faz concessões, não indica o que o destino agora reserva para essa protagonista que encarna todas as mulheres, sejam elas donas-de-casa, mães, prostitutas.
Com Jeanne Dielman, a cineasta Chantal Akerman, que sempre fez filmes feministas, aqui usa a chatice do primeiro dia como exemplo do pior dos mundos para as mulheres. As atividades rotineiras impedem o pensamento, por isso a personagem para várias vezes de fazer tudo no dia 3 para poder refletir. Este filme é um não ao conformismo.
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Ficha técnica:
Jeanne Dielman | Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles | 1975 | 182 min | Bélgica, França | Direção e roteiro: Chantal Akerman | Elenco: Delphine Seyrig, Jan Decorte, Henri Storck, Jacques Doniol-Valcroze, Yves Bical.