Macunaíma é um marco. Isso é verdade tanto para o movimento Modernista quanto para o Cinema Novo, tanto para Mário de Andrade quanto para Joaquim Pedro.
Considerado por muitos a obra prima de um dos líderes da Semana de Arte Moderna de 1922, o livro tornou-se um clássico obrigatório aos que querem conhecer “os males do Brasil”, acompanhando o “herói sem nenhum caráter”. Já o filme, adaptado pelo envolto em literatura Joaquim Pedro de Andrade, é o mais conhecido de seu diretor; que apesar de ter uma filmografia respeitável, acaba sendo lembrado principalmente por esse longa-metragem.
Joaquim Pedro: Primeiros tempos
Antes de entrarmos em Macunaíma, acho justo passarmos pela trajetória do diretor até a película que é foco da crítica. No bom livro “Joaquim Pedro de Andrade: Primeiros Tempos”, a pesquisadora Luciana Corrêa de Araújo disserta sobre a formação do cineasta, e seus primeiros trabalhos – indo dos primeiros curtas ao primeiro longa de ficção.
As primeiras peças de Joaquim Pedro na direção já envolvem dois grandes nomes da literatura brasileira. O Poeta do Castelo, de 1959, tem como protagonista Manuel Bandeira – padrinho de crisma do diretor. No curta vemos versos escritos e lidos pelo poeta, intercalados pela banalidade de sua rotina. Em O Mestre de Apipucos, outro também de 1959, vemos o cotidiano de mais um importante escritor brasileiro; no caso o sociólogo Gilberto Freyre, em sua casa de Apipucos.
Na estreia de Joaquim Pedro na direção ele já mostra um interesse especial pelo documentário. Apesar de todos os planos de ambos os filmes serem encenados, eles buscam retratar com fidelidade documental o dia a dia dos dois importantes literatos.
Vem, então, o que é particularmente o meu curta-metragem preferido do realizador, Couro de Gato (1962). Primeira ficção de sua filmografia, o episódio integra o importante Cinco Vezes Favela (1962).
Maturação
Viria, em seguida, seus dois primeiros longas. Garrincha, Alegria do Povo (1962), é o melhor documentário do período do cinema novo e, também um dos meus preferidos do gênero. E, O Padre e a Moça (1966), baseado em um poema de Carlos Drummond de Andrade, marca a estreia do realizador em ficção de longa-metragem.
Por fim, são lançados antes de Macunaíma dois documentários de curta duração com a assinatura de Joaquim. Refiro-me a Cinema Novo (1967) – produto encomendado para transmissão na televisão alemã. Ele mostra um retrato íntimo, de dentro, do movimento da nova onda brasileira, com cenas expondo o por trás das câmeras de obras importantíssimas. Talvez o caso mais claro seja Glauber Rocha dirigindo seu Terra em Transe (1967), documento de alto valor histórico. Além desse, e finalmente, Brasília, Contradições de uma Cidade Nova (1968) é o que conclui nossa linha do tempo para, enfim, chegarmos em Macunaíma.
Aqui Joaquim Pedro de Andrade, já mais experiente, parece pronto para orquestrar um projeto da ambição e importância de Macunaíma. E é sobre essa vontade que pretendo dissertar rapidamente.
Macunaíma: Produto de um contexto (Primeira fase do Cinema Novo)
Claro que todo filme é, direta ou indiretamente, produto de seu contexto, mas isso é especialmente verdade quando falamos de Macunaíma. A película faz parte do primeiro (e provavelmente o único) movimento cinematográfico brasileiro, e é peça importante para entendermos sua trajetória.
O Cinema Novo nasce com uma ambição um tanto quanto arrogante e colérica. Isto é, tentar mudar a realidade brasileira através do cinema; de alguma forma acabar com a “alienação” que o povo sofria através de algumas manifestações populares: futebol, samba, entre outros.
Esse otimismo de início morre quando, em 1964, acontece o golpe militar que acaba com a democracia do país. Isso foi, claro, um banho de água fria nos jovens diretores, que começaram a questionar se a ambição deles estava dando certo. É por isso que, a partir da segunda metade da década de 1960, eles tiram o foco do Nordeste (protagonista na primeira parte) e vão ao mundo que conhecem: a cidade. É lá que se desenrolam, por exemplo, as filmagens do já mencionado Terra em Transe (1967).
Macunaíma: Produto de um contexto (Segunda fase do Cinema Novo)
Nessa “segunda fase” do Cinema Novo, que vai do pós-golpe até a implementação do AI-5, a bilheteria começa a se tornar indispensável. Depois de serem aclamados pela crítica, para continuarem sobrevivendo, era necessário sucesso com o público. Mas como atingir a massa se não se fala sua língua?
É por isso que surgem filmes como Garota de Ipanema (1967), de Leon Hirszman (com a inacreditável participação de Glauber Rocha no roteiro). É uma desesperada tentativa de buscar apelo popular, indo contra os princípios que iniciam o movimento. Desse contexto, eclode Macunaíma, um filme colorido, com Grande Otelo, ator de chanchadas, no papel principal. Produzido pela Difilm – produtora que busca maior sucesso comercial, criada por 11 sócios, todos “membros” do movimento – o filme de Joaquim Pedro de Andrade consegue realmente grande sucesso de bilheteria, sendo caso único de todas as tentativas.
Por isso, esse período, marcado principalmente por Macunaíma, é tão específico no Cinema Novo.
A forma na floresta
Claro que, apesar de tanto discorrer sobre o longa-metragem como resultado de um processo, é necessário, além de enriquecedor, desenvolver sobre a forma do filme. Dividi esse comentário em dois, desenvolvendo sobre as sequências na floresta e depois na cidade.
Na floresta a câmera de Joaquim Pedro de Andrade se movimenta bastante. E, através da alta profundidade de campo e planos mais abertos, acaba criando uma sensação de macrocosmo ao expandir o quadro de forma centrífuga. Isso permite que haja uma encenação interessante, já que os atores não ficam delimitados na rigidez dos limites de um plano fechado.
A duração dos planos também não é maquinal, não seguindo cegamente as normas padrão da forma clássica hollywoodiana. Apesar de, como já mencionado, Macunaíma buscar um público de massa, a forma não cai na convenção padrão de plano e contra-plano. Ainda que não fosse algo tão inacessível quanto as escolhas formais de parte dos filmes do Cinema Novo, a estética de Macunaíma une certo refinamento formal com uma linguagem ainda palatável ao grande público. O que não é palatável é material base, mas falarei sobre isso mais pra frente.
Aliás, a própria decupagem não é convencional. Sem ter tantos planos aproximados (os famigerados closes) o espectador tem seu olhar guiado pela ação, que através dos diálogos ou da representação, orienta a atenção do espectador. Apesar disso, também é possível fazer leitura paratática da tela, especialmente em alguns planos mais longos, o que particularmente é engrandecedor. Possibilita uma experiência diferente a cada revisita ao filme; reparamos em coisas novas da performance dos que povoam o quadro, que dificilmente tem apenas um personagem.
A forma na cidade
Talvez a principal diferença formal entre cidade e floresta seja o uso da profundidade de campo. Se na floresta temos uma alta profundidade de campo que permite vermos sempre além dos personagens, na cidade essa profundidade está bem mais contida.
Não sei até que ponto isso se dá por uma escolha expressiva ou por uma necessidade. Como se percebe várias vezes, os figurantes não são de fato figurantes, mas pessoas que realmente vivem na locação, e provavelmente se surpreendem pela presença dos atores – principalmente da câmera. É inegável o fato de me incomodar a quantidade de pessoas que encaram o aparato fílmico com uma intensidade que realmente faz com que, por vezes eu me desconcentre do que deveria estar realmente focado: os personagens encenando.
Acho digno de nota, apesar de não ser algo de fato algo de responsabilidade da forma – mas da mise-en-scène – as cores vivas e fortes que criam um interessante antagonismo com o verde predominante do lugar de onde vieram. Aqui a direção de arte é mais atrevida que no arvoredo inicial.
A irrealidade
A montagem funciona como artifício interessante para a “magia” indiscreta do filme. Como quando Macunaíma se transforma em um “príncipe lindo” depois de fumar, ou simplesmente ficar branco, e mudar de rosto, depois de ser banhado por uma água especial.
É preciso abraçar essa irrealidade proposta pela obra original de 1928 – que já causa por si só problemas na identificação de gênero. Caso o espectador não esteja disposto a legitimar o fato de Grande Otelo interpretar uma criança – e tantas outras coisas de natureza fabular desde o início – sua experiência será altamente prejudicada.
Definitivamente, não é um filme tão fácil de ser digerido… nem tanto por sua forma, mas principalmente por seu conteúdo. Fica então o convite a entrar no mundo imaginado por Mário de Andrade e brilhantemente filmado por Joaquim Pedro. Tem seus problemas, e depende de certo nível de desprendimento do espectador. Ainda assim, tem momentos marcantes, não só para a história do Cinema Novo, mas para a história do cinema brasileiro.
Texto escrito pelo crítico e universitário de cinema Enrico Mancini, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
Macunaíma | 1969 | 110 min | Direção e roteiro: Joaquim Pedro de Andrade | Elenco: Grande Otelo, Paulo José, Jardel Filho, Dina Sfat, Milton Gonçalves, Rodolfo Arena, Joana Fomm.