O drama Mar de Dentro impacta por retratar com autenticidade a ebulição de sentimentos que a maternidade provoca. Mesmo lidando com a chave ficcional, na qual estreia a sua diretora Dainara Toffoli, alcança uma identificação mais potente do que o corajoso Olmo e a Gaivota (2015), de Petra Costa e Lea Glob, que, em essência, é documental.
O roteiro de Mar de Dentro, de autoria da própria diretora com Elaine Teixeira, conta uma história comum à grande parte das mulheres. Mas, isso não significa que seja desinteressante. Pelo contrário, o filme enfatiza a gravidez como uma experiência marcante. Como diz a instrutora de um curso preparatório para a maternidade, “Pode parecer difícil… e, realmente, é!”.
A atriz Monica Iozzi estreia em longa dramático, após trabalhar em episódios de séries do gênero. E realiza um trabalho magnífico, num papel que exige muito dela, que atua sozinha na tela em várias cenas, talvez na maior parte delas. Aliás, sozinha como a protagonista que interpreta. Ela vive Manuela, uma diretora de criação de uma agência de publicidade que descobre que está grávida de Beto (Rafael Losso), seu colega de trabalho com quem tem saído.
O filme, contando com essa tocante atuação de Monica Iozzi, consegue envolver o espectador nos dramas e nas alegrias que essa situação provoca na personagem. As percepções se alteram conforme mudam as circunstâncias. Manuela passa pelas dúvidas se mantém a gravidez, se assume uma vida a dois com Beto… Então, quando tudo parece mais bem encaminhado, acontece uma fatalidade. E, assim, ela precisa enfrentar sozinha o final da gravidez sozinha e o complicado período da licença-maternidade. A história acompanha Manuela até os primeiros meses após o retorno ao trabalho. No desfecho, a protagonista está transformada, fortalecida por essa experiência engrandecedora.
Sem lugar comum
Se esse enredo fosse mal trabalhado, descambaria para um tom novelesco. Não é o que acontece em Mar de Dentro. A transposição dessas situações – que podem ser consideradas banais, mas não são – evita o lugar comum. A única exceção, talvez, seja a caracterização dos sogros que ela mal conhece. O roteiro opta pela solução mais fácil, mostrando-os como interioranos conservadores e muito religiosos. Nesse sentido, o primeiro presente que a sogra dá para o recém-nascido é uma Bíblia para crianças. Enfim, o importante é passar a ideia de que eles são intrusos nessa vida nova à qual Manuela está ainda se adaptando.
Porém, o caso dos sogros é uma exceção. As outras situações soam autênticas e mantêm a identificação do público com Manuela. Um bom exemplo é a cena em que Beto diz que passará a noite arrumando as suas coisas para se mudar para a casa dela, e não aparece no trabalho no dia seguinte. Acompanhamos os pensamentos da protagonista, mesmo que ela não fale nada. A princípio, nós e ela pensamos que ele a está traindo (antes o vimos no bar com uma amiga e Manuela ficou com ciúmes). Mas, logo isso se transforma na tragédia inesperada que muda o curso de sua vida novamente.
Da mesma forma, não há gratuidade na resistência de Manuela em aceitar a ajuda da empregada da sua irmã. Ou na insegurança que toma conta dela para cuidar sozinha do recém-nascido, ou no retorno ao trabalho. E, no consultório da pediatra, percebemos que ela começa a se julgar como mãe, pois a empregada parece mais a par do que acontece com o bebê. De fato, antes Manuela deixava os cuidados com o pequeno Joca por conta da empregada vespertina e da babá noturna, enquanto ela se dedicava ao trabalho.
Grávida e mulher
O filme não ignora, o que muitas pessoas fazem, que a gestante continua sendo uma mulher. E, com os impulsos sexuais ativos. Por isso, mostra Manuela em busca por uma noite de sexo casual, bem como se masturbando. O empoderamento feminino, aqui, não surge como uma óbvia bandeira, mas como parte da trama, inclusive do processo de transformação pela qual passa a protagonista.
Ao final, Manuela se fortalece durante essa experiência. O símbolo dessa mudança está no mar, elemento que a traumatizou na infância. Nesse sentido, o aquário de Beto é o máximo que ela se aproxima desse ambiente, assim como foi a quase experiência da vida conjugal deles. O mar, o interno do título, serve também como metáfora do útero na gravidez. Por fim, Manuela supera esse medo de cuidar do bebê que veio deste mar interno, e viaja com seu filho e se hospeda em um hotel à beira do mar. Simbolicamente, ela está mais forte e pronta para enfrentar seus traumas.
Assim, Mar de Dentro conduz a um mergulho profundo e autêntico desse momento ímpar das mulheres. Elas se identificarão com o processo retratado no filme, enquanto os homens podem compreender melhor o que acontece nessa experiência exclusivamente feminino.
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Ficha técnica:
Mar de Dentro | 2020 | Brasil | 90 min | Direção: Dainara Toffoli | Roteiro: Dainara Toffoli, Elaine Teixeira | Elenco: Monica Iozzi, Rafael Losso, Gilda Nomacce, Fabiana Gugli, Zé Carlos Machado, Magali Biff.
Distribuição: Califórnia Filmes.
Leia o artigo sobre o filme Mar de Dentro aqui.