Mártires (Martyrs), do diretor francês Pascal Laugier, proporciona uma experiência cinematográfica marcante. Como nos melhores filmes de David Cronenberg, a proposta parece vir de uma mente doentia. Quem pensaria num cenário com pessoas mutantes que se alimentam de material sintético, se não Cronenberg no filme Crimes of the Future (2022)? Mas o impacto se torna ainda mais impactante quando a história se passa no nosso mundo contemporâneo, e não num futuro distópico. Ou seja, como as pessoas que sentem prazer com acidentes de carro no Cronenberg de Crash (1996). Ou como no filme desta crítica.
E já durante os seus créditos iniciais, Mártires se preocupa em aproximar sua trama de uma situação real. Assim, vemos um documentário, na verdade um dossiê médico, sobre Lucie, uma menina de dez anos que em 1971 conseguiu escapar de um cativeiro onde sofria torturas. Enquanto esteve internada em uma clínica, desenvolveu uma forte amizade com outra paciente. No final desse prólogo, um vulto atormenta Lucie, o que dá a impressão que o filme trilhará o caminho do típico terror sobrenatural. Mas não, e essa é apenas uma das expectativas que esse surpreendente enredo desmorona.
Mais fundo na bestialidade
Quando a história, de fato, começa a Lucie adulta parte para uma impiedosa vingança, executada com brutalidade. A suspeita de um fenômeno sobrenatural é descartada, e agora parece que estamos diante de um filme de mulheres vingativas, como Sedução e Vingança (Ms. 45, 1981), de Abel Ferrara. Contudo, se fosse assim, o filme seria muito curto, pois estamos ainda na sua metade. E a segunda nos leva mais fundo na bestialidade do ser humano, capaz de realizar experimentos em seus semelhantes para descobrir o impossível: o que existe após a morte. Para isso, cientistas que remetem a nazistas aposentados submetem sua nova vítima ao sofrimento máximo, muito próxima de morrer, como uma mártir.
Essa metade final do filme é extenuante para o espectador. A personagem por quem nos afeiçoamos padece nesse processo repetitivo de martírio. Acertadamente, o diretor Pascal Laugier retrata essa tortura com repetidos planos dessa rotina cruel, separadas entre si por fade-outs, recurso que aqui denota não só a passagem do tempo, mas também a falta de esperança.
Voltando ao parágrafo inicial deste texto, ressaltamos que Mártires é sim uma experiência cinematográfica marcante, porém convém completar: e intencionalmente perturbador. Seu conceito é audacioso, filmado de forma corajosa, sem concessões. Mas, para ser visto uma só vez na vida, dado seu alto teor de niilismo.
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Ficha técnica:
Mártires | Martyrs | 2008 | 99 min | França, Canadá | Direção e roteiro: Pascal Laugier | Elenco: Morjana Alaoui, Mylène Jampanoï, Catherine Bégin, Robert Toupin, Patricia Tulasne, Juliette Gosselin, Xavier Dolan, Louise Boisvert.
