Morte no Nilo (Death on the Nile) mostra uma evolução de Kenneth Branagh na direção de uma adaptação da obra de Agatha Christie. Em Assassinato no Expresso do Oriente (Murder on the Orient Express, 2017), o diretor exagerou na estilização e quase estragou o clima de mistério da trama. Desta vez, ele continua a empregar recursos inventivos, mas com maior objetividade em relação à narrativa.
Exemplo disso é o prólogo, filmado em preto e branco não de forma gratuita, mas porque se trata de um acontecimento da juventude do protagonista Hercule Poirot, interpretado pelo próprio Branagh. A câmera passeia, num plano sem cortes, pelas trincheiras durante a Primeira Guerra Mundial. O jovem soldado Poirot corajosamente propõe ao seu capitão uma estratégia de ataque. Aparentemente, o resultado dá certo, mas essa sequência revela a origem do seu famoso bigode. Um detalhe dispensável, porém, justificável para adicionar uma camada a mais na personalidade do detetive. Na verdade, é mais que isso, pois esse elemento retornará na conclusão para simbolizar uma mudança na vida de Poirot.
A receita continua a mesma das outras adaptações de livros de Agatha Christie para o cinema. Inclusive, de Morte sobre o Nilo (Death on the Nile, 1978), dirigido por John Guillermin. Ou seja, um lugar exótico e um elenco de famosos. O primeiro quesito, no entanto, aqui recorre visivelmente à computação gráfica, que não convence como deveria, principalmente na reprodução do hotel opulento onde acontece o casamento. Já o elenco não desaponta: além de Branagh, temos Armie Hammer, Gal Gadot, Annete Bening, Emma Mackey, Rose Leslie, Russell Brand… E, como é tradição nas histórias da escritora, o crime acontece em um ambiente restrito, no caso um barco, no qual todos se tornam suspeitos.
Atualização
Essa adaptação atualiza alguns aspectos do livro, publicado em 1937. Apesar de se manter como um filme de época, o roteiro insere uma relação lésbica e levanta a bandeira antirracista. Para isso, houve alteração dos personagens originais do livro, o que pode desagradar os fãs de Christie. Além disso, o filme explora a sensualidade, em especial na dança no início do filme entre Emma Mackey e Armie Hammer, e nos amassos deste com Gal Gadot no alto de uma construção da época dos faraós. O resultado é um ritmo mais fluído do que o obtido em Assassinato no Expresso do Oriente. No entanto, não espere ser capaz de resolver o mistério de quem é o culpado, pois Poirot apresenta informações que o público não tinha.
A direção de Kenneth Branagh acerta em vários pontos. O uso do preto e branco no início combina com a Primeira Grande Guerra e com o olhar ao passado do seu filme anterior, Belfast (2021), com a crucial diferença de que aqui não há nostalgia, mas sim uma recordação traumática para Poirot. Por outro lado, vemos muitos enquadramentos perfeitamente simétricos, o que se alinha com o transtorno obsessivo de Poirot, que estava mais evidente na sua aventura anterior, quando ele exigia dois ovos cozidos com a mesma altura. Então, isso ajuda a evidenciar o momento em que ele se isola atrás de uma porta para resolver o mistério, enquanto os demais personagens, que parecem distorcidos atrás dos vidros, brigam e discutem entre si.
Para quem gosta de whodunits, Morte no Nilo pode frustrar pelo citado detalhe de Poirot possuir mais informações do que o público. Porém, isso acontecia também nos livros de Agatha Christie. A diversão de desvendar o crime, então, se restringe a adivinhar quem é o culpado.
___________________________________________
Ficha técnica:
Morte no Nilo | Death on the Nile | 2022 | Reino Unido, Estados Unidos | 127 min | Direção: Kenneth Branagh | Roteiro: Michael Green | Elenco: Kenneth Branagh, Gal Gadot, Armie Hammer, Emma Mackey, Tom Bateman, Annette Bening, Rose Leslie, Ali Fazal, Rosei Dwyer, Jennifer Saunders, Russell Brand, Michael Rouse.
Distribuição: 20th Century Studios Brasil.