A sensualidade de “Boneca de Carne”
A dupla Elia Kazan e Tennessee Williams obteve êxito no teatro e a parceria, inevitavelmente, chegou ao cinema. O primeiro longa-metragem, “Uma Rua Chamada Pecado” (A Streetcar Named Desire, 1951), estrelado por Vivien Leigh e Marlon Brando, arrancou elogios da crítica e do público. O segundo filme dessa colaboração surgiu nas telas cinco anos depois. E “Boneca de Carne” causou furor na conservadora sociedade norte americana.
Nos Estados Unidos sulista, no Mississippi, Baby Doll (Carroll Baker) é uma garota de 19 anos, casada com o quarentão Archie Lee, um fazendeiro até então bem-sucedido na locação de máquinas de descaroçar algodão. Atualmente, ele está quebrado, devido à concorrência do imigrante italiano Silva Vacarro (Eli Wallach). Além da péssima situação financeira, o que o angustia é o casamento. Afinal, a consumação só acontecerá quando a noiva completar 20 anos, a menos que ela o consinta antes. No entanto, isso não acontece porque a beldade está desiludida com a expectativa que tinha de se casar com um homem rico.
A história começa dois dias antes do vigésimo aniversário de Baby Doll. E mostra a moça constantemente irritando o marido, que, por sua vez, procura pelo menos espiá-la enquanto dorme em um pequeno banco. Esta cena, onde Carroll Baker veste camisola e chupa o polegar, se tornou icônica e foi, inclusive, utilizada no pôster de divulgação do filme. Então, um caminhão de mudanças chega à casa para retirar todos os móveis, devido à falta de pagamento, o que piora ainda mais a crise do casal. Desesperado, Archie Lee incendeia as instalações do concorrente.
Sedução por vingança
No dia seguinte, desconfiado da autoria do delito, Silva se dirige à fazenda de Archie Lee, onde conhece Baby Doll e tenta seduzi-la por vingança. Surge nas telas, então, uma das mais sensuais cenas de sedução do cinema, quando Silva se senta ao lado da garota no balanço. Carroll Baker está exuberante como a aparentemente caipira ingênua, que na verdade pode estar dissimulando para justamente seduzir o empresário bem de vida. Elli Wallach soa ameaçador, mas talvez tenha apenas caído na armadilha da moça. Essa dualidade apimenta a sequência onde o sexo aparece na sua forma mais sedutora: a implícita. Assim, o jogo continua até o dia seguinte, mesmo quando Archie Lee retorna para casa, culminando numa exacerbação incontrolada de emoções, característica dos finais apoteóticos de Tennessee Williams.
A tensão durante o filme é quebrada de tempos em tempos pela presença da criada idosa e atrapalhada Aunt Rose (Mildred Dunnock), se bem que o tratamento cruel de Archie Lee coloca drama nessas situações. Também é engraçada a cena em que Silva procura assustar Baby Doll, mexendo na casa para que ela pense que existem fantasmas por lá. A igreja cristã nos EUA descartou qualquer humor em “Boneca de Carne”, taxou-o de indecente e considerou um pecado assisti-lo.
Ponto de ebulição
O diretor Elia Kazan acertou no ritmo do filme, retratando bem as poucas horas em que a trama se desenrola. Não há desvios no tempo, nada de flashbacks ou descontinuidade, o que permite “Boneca de Carne” esquentar gradualmente até atingir o ponto de ebulição. Tecnicamente, Kazan utiliza a profundidade, em cenas como aquela em que coloca Archie Lee em primeiro plano, enquanto sua esposa e Silva se provocam na mesa em segundo plano.
O cineasta permite ao espectador concluir a representação da mise-en-scène, sendo um belo exemplo disso a cena do jantar quando Baby Doll e Silva se sentam em cadeiras e Archie Lee em um caixote, mostrando que àquela altura o marido já perdera sua posição na relação. As forças da natureza, também, andam lado a lado com o clima do filme. Por isso, na cena de sedução, o calor é insuportável.
Da mesma forma, quando o drama atinge seu ápice, surge uma tempestade com ventos fortes. Todos esses elementos se encaixam, e tornam “Boneca de Carne” um dos filmes mais sensuais já realizados, ainda que não contenha nenhuma cena de sexo ou nudez. É como os melhores filmes de terror, quando o implícito assusta mais que entranhas ensanguentadas saindo da barriga. O filme de Kazan foi tão marcante que até hoje baby doll (do título original) virou sinônimo de camisola.
Ficha técnica:
Boneca de Carne (Baby Doll, 1956) 104 min. Dir: Elia Kazan. Rot: Tennessee Williams. Com Karl Malden, Carroll Baker, Eli Wallach, Lonny Chapman, Eades Hogue, Noah Williamson, R.G. Armstrong. Madeleine Sherwood, Rip Torn.
Assista: entrevista com Elia Kazan