Penúltimo filme de Fritz Lang nos Estados Unidos, No Silêncio de uma Cidade (While the City Sleeps, 1956) revela a opinião do diretor sobre a sociedade desse país. Mais do que os assassinatos de mulheres cometidos por um homem doente, o impressionante mesmo é que todos os personagens parecem canalhas.
Por ser um filme B produzido para a RKO, o elenco não traz estrelas. A maioria dos atores e atrizes que nele atuam costumam fazer papeis coadjuvantes (George Sanders, Howard Duff, Thomas Mitchell), ou são protagonistas que não alcançaram o status de celebridade (Dana Andrews, Rhonda Fleming, Ida Lupino). É verdade que Vincent Price atua no filme, mas bem antes de se tornar célebre. Enfim, a ausência de nomes do primeiro patamar pode dificultar a empatia automática do espectador, porém, condiz com a visão cínica de Lang sobre a sociedade norte-americana.
O jogo pelo poder
O enredo do filme começa com um assassinato que desperta a atenção (cobiça?) do dono de um jornal. Mesmo doente, à beira da morte, ele quer aproveitar esse furo com uma notícia bombástica. Como o assassino escreveu na parede com um batom uma provocação (“Pergunte à mamãe”), o jornal apelida o serial killer de “assassino do batom”. Desta forma, pretende espalhar o pavor entre as mulheres – e vender mais exemplares de sua publicação.
O dono do jornal morre em seguida, e quem o substitui é seu filho, Walter Kyne (Vincent Price). Totalmente inexperiente no negócio do pai, ele desafia três empregados a desvendarem esses assassinatos em série. Quem conseguir primeiro, ganhará o cargo de diretor executivo. Então, começa um jogo sujo entre os três. Curiosamente, o protagonista não é nenhum deles, e sim Edward Mobley (Dana Andrews), que era o favorito do finado proprietário do jornal, mas nunca teve essa ambição. Com bons contatos na polícia, Mobley ajuda Jon Day Griffith (Thomas Mitchell), um dos três que disputam a promoção.
Sexo
O sexo se torna uma das armas nesse luta de malandros, que, por sinal, só conseguem desenrolar seus esquemas porque as outras pessoas também são desprezíveis. Assim, um deles seduz a atual esposa de Walter Klyne, para obter vantagens. Um outro induz a colunista Mildred Donner (Ida Lupino) a se envolver com Mobley – e este cai na tentação, apesar de ser noivo de Nancy Ligett (vivida pela fraca atriz Sally Forrest). E, nem esta escapa ao escrutínio de Lang, pois ela aprecia o buquê de flores que recebe do chefe dela. Talvez todos sejam até piores do que o assassino em série. Este não consegue controlar o seu distúrbio que irrompe ao se sentir atraído por alguma mulher, porém, os demais agem erradamente com plena consciência. Voltanto ao sexo, este é tema constante nos diálogos insinuosos, muitas vezes grosseiros.
Em meio a tantos atos furtivos, Fritz Lang usa o seu talento para brincar de ludibriar o espectador. Em vários trechos, ele usa uma transição invisível, unindo um plano ao outro como se fossem o mesmo, mas que na verdade não são. O mais surpreendente deles está na abertura, quando a câmera que filma objetivamente a vítima caminhando para o banheiro de seu apartamento se torna subjetiva, representando o que o assassin vê. Mas, há outros momentos em que essa transição acontece. A tela da TV no quarto do dono do jornal de repente mostra o apresentador (função de Mobley) anunciando a morte dele. O telejornal serve também para unir a cena anterior com um contraplano do assassino assistindo a notícia sobre os seus crimes. Efeito similar tem o jornal que Mobley entrega para Nancy, fazendo a transição para o criminoso lendo essa publicação.
O artista sem liberdade
Ao inserir diálogos nos quais Mobley e Nancy falam na terceira pessoa sobre eles mesmos, Lang parece dizer que os norte-americanos não podem ser eles mesmos (ou não conseguem se enxergar como realmente são). Daí, vivem insinuando ser quem não são, como fazem os personagens de No Silêncio de uma Cidade. E de onde pode ter vindo essa impressão de Lang? Provavelmente do seu trabalho em Hollywood, onde não se adaptou ao sistema dos grandes estúdios. Lang queria filmar com liberdade, e não ser um pau mandado como quis antes Joseph Goebbels (o que resultou na sua fuga da Alemanha), ou como fazia o Dr. Mabuse (seu personagem recorrente).
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Ficha técnica:
No Silêncio de uma Cidade | While the City Sleeps | 1956 | 100 min. | EUA | Direção: Fritz Lang | Roteiro: Casey Robinson | Elenco: Dana Andrews, Rhonda Fleming, George Sanders, Howard Duff, Thomas Mitchell, Vincent Price, Sally Forrest, John Drew Barrymore, James Craig, Ida Lupino, Robert Warwick, Mae Marsh.