O filme original, O Auto da Compadecida (2000), deleita os espectadores com os inspirados diálogos da peça de Ariano Suassuna publicada em livro em 1955 que o diretor Guel Arraes aproveitou para transformar numa screwball comedy com falas metralhadas, acompanhadas ainda de uma edição nervosa que combinou com a confusão criada pelo protagonista malandro João Grilo (Matheus Nachtergaele que, juntamente com Selton Mello, que faz o seu companheiro Chicó, se jogam sem medo em interpretações deliciosamente caricatas, adequadas à origem teatral do material). Na verdade, o filme é uma versão compactada da minissérie lançada um ano antes, por isso, em algumas transições é possível notar cortes abruptos.
Vinte e poucos anos depois, chega aos cinemas a sequência O Auto da Compadecida 2, novamente dirigido por Guel Arraes, agora junto com Flávia Lacerda. Desta vez, sem contar com os diálogos ou a estória do autor Suassuna, morto em 2014, que não escreveu uma continuação para essa sua obra. A ausência do talento cômico e dramatúrgico do escritor paraibano se faz sentir no filme. Algumas falas até são engraçadas, mas sem a agudeza capaz de surpreender o público.
Narração em rimas
O enredo se apoia na narração de Chicó que se tornou poeta mesmo sendo iletrado. Conta, em rimas, a história de seu amigo João Grilo, a quem não vê há vinte anos. A trama não explora a fundo, mas toca na mitificação religiosa que transformou a pequena cidade de Taperoá num ponto turístico. Muita gente quer ver o local onde aconteceu o milagre da ressurreição de Grilo. Mas, o sumiço dele está esgotando esse interesse, e Chicó vive na pobreza sobrevivendo com os trocados que ganha como guia turístico da cidade.
Quando João Grilo reaparece em Taperoá, reaviva a adoração do povo por seu ídolo local. Logo, ele se vê no meio da disputa eleitoral para a prefeitura, dividida entre o Coronel Ernani (Humberto Martins), latifundiário desonesto, e o empresário Arlindo (Eduardo Sterblitch), dono da maior loja da cidade e da estação de rádio local. Grilo, sempre esperto, se aproxima dos dois, mas tem um plano para beneficiar a si mesmo.
Descaracterização
Algumas engrenagens não se encaixam nessa narrativa. As imagens iniciais revelam que Taperoá se tornou quase uma cidade fantasma. As casinhas estão tortas, prestes a desabar, e não se vê viva alma nas ruas, até chegar o ônibus com minguados turistas. Porém, no decorrer da história a cidade está repleta de gente e movimento – o que justifica a disputa pela prefeitura pelos dois moradores mais ricos da região. A ausência de João Grilo é outro ponto que causa estranheza. Pelo que Chicó conta, parece até que não existiu a parte final do primeiro filme, quando os dois vagam pelo sertão, junto com Rosinha (Virgínia Cavendish). Esta personagem, aliás, também sumiu por anos, e a explicação não convence. Além disso, a inclusão da personagem Clarabela (Fabiula Nascimento), soa desnecessária, um pretexto para fortalecer a capacidade natural de Chicó de seduzir as mulheres, característica subentendida na obra original, mas sem merecer essa atenção toda.
E isso contribui para que esse Chicó de agora perca o charme da ingenuidade, e mesmo do intelecto menos desenvolvido, desse protagonista. No lugar, se enfatiza sua falta de coragem, em contraposição com sua habilidade de seduzir e escrever poemas. Como resultado, Selton Mello entrega uma atuação mais contida, e esse novo Chicó irradia menos alegria. Em outra decisão infeliz do roteiro, entra um rival de Chicó pela amizade de João Grilo, o malandro carioca Antônio do Amor (Luis Miranda), que se torna o principal companheiro das trapaças de Grilo. Mas, ele é justamente o oposto de Chicó – ou seja, um espertalhão nada confiável.
Fantasia
O Auto da Compadecida 2 mergulha com tudo na fantasia. O cenário é de um artificialismo artístico, comparável ao colorido cinema de Wes Anderson. A presença massiva do rádio, juntamente com esse visual retrô, remete aos anos 1950, vinte anos depois dos relatos do primeiro filme. Como no original, a sequência traz alguns breves trechos animados, desta vez utilizados para ilustrar flashbacks e para explicações – neste último quesito, revelando a influência de Jorge Furtado, creditado como roteirista colaborador.
O filme possui muitas canções, desde a sua abertura e em alguns trechos que quase o colocam no gênero musical. Muitas se adequam ao sertão nordestino, mas o uso de “Canção da América”, do carioca Milton Nascimento, parece uma solução óbvia demais para enaltecer a amizade entre os dois protagonistas, o que esse filme justamente chamusca pela ausência de tantos anos e pela chegada de Antônio do Amor. Vale ressaltar, ainda, que essa composição aparece em mais de uma cena.
O Auto da Compadecida 2, apesar desses senões, se sustenta como uma boa comédia com um visual arrojado. Mas, decepciona quem espera reviver a magia do primeiro filme.
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Ficha técnica:
O Auto da Compadecida 2 | 2024 | 104 min. | Brasil | Direção: Guel Arraes, Flávia Lacerda | Roteiro: Guel Arraes, João Falcão | Elenco: Matheus Nachtergaele, Selton Mello, Taís Araujo, Humberto Martins, Luis Miranda, Eduardo Sterblitch, Fabiula Nascimento, Virginia Cavendish, Enrique Diaz.
Distribuição: H2O Films.