“O Beijo Amargo” é um soco na sociedade preconceituosa dos EUA
O tapa na cara dado pela personagem Kelly (Constance Towers) nos primeiros segundos de “O Beijo Amargo” escancara a proposta de crítica à sociedade ultraconservadora estadunidense, principalmente aquelas das cidadezinhas do interior. A sequência traduz perfeitamente o tom ácido do filme. Ela se inicia já no gesto agressivo, antes dos créditos e do título, dando a impressão que o projecionista no cinema inverteu a ordem dos rolos. Logo percebemos que, além desta, várias outras convenções serão desafiadas.
Na briga, quem agride é a mulher e a vítima é o homem, o que estará alinhado com a história. Na trama, a ex-prostituta Kelly é vista com maus olhos, enquanto quem comete atos realmente repugnantes é o seu noivo, que goza de boa reputação na pequena Grantville. Fica clara a inversão dos papéis tradicionais. O jazz com trompetes estridentes embala essa abertura arrebatadora. Kelly, que na luta perde sua peruca que revela sua cabeça careca, se recompõe colocando de volta os cabelos e se maquiando, enquanto os créditos finalmente aparecem.
O recomeço
Dois anos depois, em 1963, Kelly chega a Grantville, onde logo passa uma tarde transando com o policial Griff (Anthony Eisley). E pede a ele segredo para que possa recomeçar sua vida de forma honesta nesta pequena cidade onde ninguém conhece seu passado como prostituta. Kelly consegue se estabelecer e arruma um emprego cuidando de crianças com problemas de locomoção em um hospital. Esse trabalho acaba tornando Kelly uma pessoa mais sensível e bondosa. Uma sequência musical traduz essa transformação, na qual ela e as crianças cantam uma bela canção de esperança. Tudo parece ir muito bem no recomeço planejado por Kelly, que conhece um rapaz muito respeitado na sociedade, Grant (Michael Dante), de quem fica noiva.
Ele, porém, não é o bom moço que aparenta ser. E aquela singela canção do hospital ganha tons perversos quando seu desvio de comportamento se revela perante Kelly, que então comete um assassinato que a leva à prisão. Essa sequência dramática foi filmada com muitas elipses para que o espectador conclua por si mesmo qual é o ato condenável de Grant. Afinal, ele não poderia ser mostrado abertamente nas telas na época em que o filme foi realizado.
Fuller
O diretor e roteirista do filme, Samuel Fuller, começou sua carreira em 1949 e lançou produções independentes prolificamente até este “O Beijo Amargo”. A partir de então, trabalhou para a televisão e fez poucos filmes para o cinema, retornando de fato com o brilhante “Agonia e Glória” (1980). Sempre com um tom crítico, Fuller ganhou respeito da crítica por sua ousadia temática e técnica. Seu talento em comunicar ideias através de imagens pode ser identificado em várias sequências de “O Beijo Amargo”.
A ilusão de recomeçar a vida, sonhada pela personagem Kelly, ressona na história que ela trabalha com as crianças com problemas de locomoção. Nesse sentido, ela transporta a imaginação dos pequenos para um mundo paralelo onde correm brincando felizes. Enquanto essas cenas das crianças surgem nas telas, vemos o rosto de Kelly vagando, como se pudesse apagar o seu passado como prostituta.
Além disso, outra sequência emblemática é aquela em que Kelly, através da janela com grades da prisão, observa na rua a garota que pode inocentá-la de seu crime. Angustiada, por longos minutos ela sente que precisa chama-la, mas não consegue, justamente num momento crucial para definir seu futuro. Fuller enquadra o rosto de Kelly com a sombra da grade em sua boca, simbolizando essa dificuldade psicológica da personagem.
Preconceito
Tematicamente, Samuel Fuller ataca neste melodrama o preconceito da sociedade em relação a pessoas que possuem um passado que ela considera moralmente condenável, como a ex-prostituta. O bairro arborizado onde vive o noivo de Kelly, com crianças brincando nos jardins de belas casas, é a superfície dessa sociedade supostamente perfeita. Mas, ela esconde mentes doentias como a do respeitado solteirão Grant. Essa quebra de expectativas se alinha com o uso recorrente de jump cuts, os cortes que quebram a continuidade da cena, deixando o espectador desconfortável. Aliás, é uma influência da nouvelle vague no cinema independente norte-americano pelas mãos de Samuel Fuller.
Ficha técnica:
O Beijo Amargo (The Naked Kiss, 1964) 90 min. Dir/Rot: Samuel Fuller. Com Constance Towers, Anthony Eisley, Michael Dante, Virginia Grey, Patsy Kelly, Marie Devereux, Karen Conrad, Linda Francis, Bill Sampson, Sheila Mintz, Patricia Gayle, Jean-Michel Michenaud, George Spell, Christopher Barry, Patty Robinson, Betty Robinson, Sally Mills, Edy Williams, Betty Bronson.
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