Em O Contador de Cartas (The Card Counter), Paul Schrader parece ressuscitar o Travis Bickle de Taxi Driver (1976), mas em sua versão ao contrário. O protagonista desse filme dirigido por Martin Scorsese gradativamente materializava o psicopata que crescia dentro dele. Já William Tell (Oscar Isaac) trilha o caminho oposto. Após trabalhar como militar interrogador (leia-se torturador) de prisioneiros, ele procura se redimir das atrocidades que cometeu. Cumprir a pena de oito anos por esses crimes não suficiente para isso. Mas, seja em direção à psicopatia como para longe dela, Schrader mostra que qualquer incidente pode detonar uma tragédia.
A força do filme está, principalmente, em seus personagens. O protagonista é um inusitado ex-torturador, o que já gera um enorme desconforto para o público. Teremos que sentir empatia, até torcer, por alguém que cometeu atrocidades terríveis? No caso de William, é o que acontece, e isso porque acreditamos que ele realmente se arrepende do passado. Além disso, já cumpriu sua pena. Se isso não é o suficiente, o roteiro ainda o coloca em vias de praticar boas atitudes. Como exímio jogador de cartas profissional, ele tenta ajudar o jovem endividado Cirk (Tye Sheridan).
Redenção através de Cirk
Mas, ao contrário de William, Cirk está desorientado, e a visita que William faz ao seu apartamento comprova esse estado, pois o lugar é uma bagunça só. Completamente o oposto do ex-militar que decide manter as apostas e os ganhos baixos, mesmo tendo potencial para ganhar uma fortuna nos jogos. William planejou como viver seu futuro após passar oito anos encarcerado. É metódico, e tem o bizarro costume de cobrir todos os móveis dos quartos de hotel que ele se hospeda enquanto viaja de cidade a cidade para jogar nos cassinos. Enquanto isso, Cirk quer se vingar do chefe dessas missões de interrogatório (os flashbacks com lentes distorcidas e música thrash metal parecem pesadelos). Para o jovem, esse homem, o Major John Gordo (Willem Dafoe), é o responsável pelo suicídio do seu pai.
William resolve ajudar esse rapaz não por um sentimento paterno (que ele não tem), e muito menos para proteger Gordo. Ajuda porque acredita que, assim, conquistará sua redenção. Afinal, veja quanto bem ele realizará. Primeiro, evitará a morte de Gordo e a provável prisão de Cirk pelo assassinato. Além disso, conduzirá Cirk à reconciliação com sua mãe, que abandonou o lar, fato que ele nunca perdoou.
Pessimismo
No entanto, estamos num filme de Paul Schrader, portanto, não espere um final feliz. O mesmo pessimismo de Taxi Driver impera aqui em O Contador de Cartas. Nessa visão, é inconcebível uma redenção para o ex-torturador. O arrependimento não é fator suficiente para diferenciar William Tell de John Gordo; é o que parece simbolizar Schrader ao revelar que o major também cobre os móveis de sua casa com panos brancos. Cirk, pelo menos, soube perdoar a mãe, mas não conseguiu ser assim compreensivo com o ex-militar.
Mas faltou pouco para William alcançar a redenção. Até amou, nesse breve período em liberdade, na bela cena do jardim iluminado, pelo qual ele passeia com a intermediadora dos jogos de cartas, La Linda (Tiffany Haddish). O último quadro, com as mãos desses dois personagens tentando se tocar, porém, separados por um vidro, evidencia o quanto ele chegou próximo do seu objetivo.
O final é amargo, como o filme inteiro, com exceção do momento romântico. Possui uma densidade potente, que extrapola o consistente personagem principal maravilhosamente interpretado por Oscar Isaac. E, essa força conduz a uma quase velada crítica à extrema direita: nos vencedores dos campeonatos de poker que gritam “USA! USA!” quando ganham, e no papel de Willem Dafoe, que sai ileso das denúncias contra os torturadores que ele comandava.
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Ficha técnica:
O Contador de Cartas | The Card Counter | 2021 | 111 min | EUA, Reino Unido, China, Suécia | Direção e roteiro: Paul Schrader | Elenco: Oscar Isaac, Tiffany Haddish, Tye Sheridan, Willem Dafoe, Alexander Babara, Bobby C. King, Ekaterina Baker, Bryan Truong.