O Espírito da Colmeia transpõe para as telas a visão fantasiosa da infância, através da percepção ingênua, porém desbravadora, de uma menina que inconscientemente questiona o mundo dos adultos.
E o filme utiliza o cinema como o gatilho que desperta um ainda indefinido descobrimento da morte. A história se passa em um pequeno vilarejo castelhano perto de 1940. A equipe de exibição itinerante projeta Frankenstein (1931) e Ana, pela primeira vez, tem contato com a morte. Por isso, questiona à irmã um pouco mais velha, Isabel, por que o monstro matou a menina, e por que as pessoas o mataram depois.
Ao contrário da ingenuidade e pureza de Ana, Isabel já é mais racional e até um pouco maldosa. Primeiro, tenta quebrar o deslumbramento que o filme provocou na irmã e lhe diz que ninguém morreu, pois no cinema tudo é trucagem. Depois, tenta contaminá-la com o medo, e conta que viu os espíritos dos mortos. Esse lado perverso da primogênita será reforçado em duas cenas: quando ela quase estrangula o gato, e quando finge que morreu para assustar a caçula.
Além disso, Isabel conduz Ana até um galpão abandonado, onde alega ter visto um espírito. Depois, nesse local Ana encontrará um fugitivo e, tal como no filme de James Whale, ela o ajuda, sem notar qualquer perigo nisso. Porém, a polícia acabará por descobrir esse esconderijo e matará esse homem. Na conclusão do filme, após descobrir o que aconteceu, Ana tenta uma vã escapada desse mundo dos adultos. Para ela, é um mundo cruel, que quer eliminar os que podem fazer mal aos outros, assim como seu pai fez ao amassar com os pés um cogumelo venenoso que crescia no campo.
Fantasia e realidade
Na verdade, essa linha narrativa serve apenas para conduzir a história. Essencialmente, O Espírito da Colmeia quer expressar suas ideias indiretamente, através das sensações que provoca em suas cenas. Dessa forma, se aproxima da turva percepção infantil, em que não há uma distinção definida entre a fantasia e a realidade. Por isso, está repleto de sequências que não permitem uma interpretação definida, até porque, muitas delas apenas ilustram o cotidiano.
A ideia da metáfora sobre as abelhas na colmeia salta aos olhos na fotografia que privilegia tonalidades que se aproximam da cor mel. Em especial, na casa da família de Ana, cujas janelas possuem grades hexagonais que lembram as colmeias. Portanto, isso nos induz a comparar os pais dela com a atividade das abelhas, que trabalham como robôs movidas por alguma força invisível, sem nada questionar. O casal vive um relacionamento frio – a mãe envia uma carta para um antigo amor, e o pai se dedica à apicultura. Enfim, executam suas atividades diárias automaticamente, como as abelhas. Em outras palavras, vivem por viver.
Direção de Víctor Erice
O Espírito da Colmeia é um filme singular, a estreia em longa-metragem do diretor Víctor Erice, que faria apenas mais um filme nesse formato, chamado O Sul (1983), este também com o tema das lembranças da infância. Sua filmografia evidencia que Erice privilegia o curta-metragem.
Apesar do tema e da característica sensorial de O Espírito da Colmeia, Víctor Erice dá indícios de ser um cineasta racional e meticuloso. Nesse sentido, os enquadramentos denunciam a busca pela perfeita simetria, muitas vezes colocando algum ponto de referência central indicando a equidistância dos dois lados. Adicionalmente, segundo anotação no site IMDb, o filme possui exatamente 1.000 tomadas, sendo 500 internas e 500 exteriores. Além disso, ele faz questão de demonstrar a ausência de uma unidade familiar através de planos que nunca incluem todos os membros juntos.
Ana Torrent
Por fim, destaca-se o magnetismo da atriz infantil Ana Torrent, aqui atuando em seu segundo filme, com apenas seis anos. É impressionante como ela consegue interpretar com naturalidade, como se fosse a própria personagem. Em seu filme seguinte, Cría Cuervos (1976), de Carlos Saura, Ana Torrent faria o papel que a tornaria eternamente famosa. Adulta, a atriz manteve sua carreira, e ainda está na ativa, mas sem a mesma repercussão de antes.
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Ficha técnica:
O Espírito da Colmeia (El espíritu de la colmena) 1973. Espanha. 98 min. Direção: Víctor Erice. Roteiro: Ángel Fernández Santos, Víctor Erice. Elenco: Fernando Fernán Gómez, Teresa Gimpera, Ana Torrent, Isabel Tellería, Ketty de la Cámara, Estanis González, José Villasante, Juan Margallo.
Onde assistir?
Ficou interessado? Então, aproveite: o filme está na programação do Festival “Volta ao Mundo: Espanha” da plataforma Belas Artes à la Carte, entre os dias 3 e 16 de junho de 2021.