Um entre tantos filmes expressivos e belos do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, O Evangelho Segundo São Mateus (1964), está disponível temporariamente na plataforma de streaming MUBI, em comemoração ao centenário do cineasta.
Sua principal marca é, sem dúvida, a simplicidade minimalista. A locação foi estabelecida no sul da Itália. O texto é integralmente o Evangelho de Mateus – fiz o exercício encantador de acompanhar paralelamente o andamento das cenas e a leitura na Bíblia. Os atores são amadores, muitos, inclusive o que interpreta Cristo, a atuarem pela primeira vez. Maria, mais velha, é a própria mãe de Pasolini, Susanna. E a música, clássica e popular, costura este conjunto.
Estilo de filmagem
O filme oscila entre planos-sequências e enquadramentos de rostos ou de imagens sobre alguma questão específica do discurso bíblico que está sendo narrada.
A beleza dessas alternâncias está justamente no fato de que os primeiros se mostram adequados para desnudar a ideia de percurso, de caminho do líder religioso e seus seguidores, situação em que se forja a doutrina, e que pressupõe a interação dos atores humanos, em sua vivência relacional de tempo e espaço. É interessante perceber que o discurso do Evangelho de Mateus é tão integrado ao andamento da narrativa, que acreditamos ser, ao invés disso, obra de um roteirista. Além do que, ficamos a pensar que é justamente esse um dos pontos altos a evidenciar a excelência de Pasolini, na direção.
Já os planos com os enquadramentos, geralmente longos, expõem a particularidade de cada rosto. Vai da serenidade de Maria, jovem grávida, à sua dor profunda de mãe no Calvário, e dos traços angustiados dos seguidores pobres do Cristo, à gravidade arrogante de seus detratores. Talvez sejam esses momentos que nos permitem apreciar a beleza, quase pictórica, desses enquadramentos, e fique evidente, então, que a opção pelo filme em preto e branco foi a mais adequada.
Escolha das locações
Em outra direção, quero tratar, também, de um documentário, Locações na Palestina, que acompanha a edição restaurada do filme, em um conjunto de dois DVDs, lançados em 2014 pela Versátil Home Video. Nele, Pasolini passeia pela Galileia, Jordânia e Síria, evangelho na mão, com um sacerdote de nome Andrea, que é seu conterrâneo e lhe serve de guia.
Pasolini estava, na ocasião, estudando os locais descritos, para projetar a cenografia do filme. Sobre isso, li em um artigo1: “A impressão dominante, repetidamente articulada neste documentário que coleciona locações para O Evangelho Segundo São Mateus é da humildade — este é o termo utilizado por Pasolini — dos locais que o Evangelho determina como o grande palco da pregação e Paixão de Jesus. Do ponto de vista da contaminação, a paisagem pobre e em ruínas se deixa penetrar pelas riquezas da arte cristã, mas sem se neutralizarem mutuamente. Mesmo antes da viagem, Pasolini já havia decidido não utilizar as locações para seu filme sobre o Evangelho de São Mateus. A expedição à Palestina teria como função informar a noção de ‘analogia’ que, complementando aquela de contaminação, qualifica a fundamentação cristológica do projeto”.
Os diálogos entre ambos e suas reflexões é para deixar qualquer cristão aos prantos. Comove a aparente contradição da situação. De um lado, Pasolini, um cineasta, escritor, ateu e homossexual, fazendo um esforço para compreender rigorosamente os fatos narrados, em sintonia com os locais da trama real dos acontecimentos, ser fiel a eles; de outro, um sacerdote, quase que como lhe dando um aval para ser mais “permissivo”, libertar-se da leitura, para criar seu próprio entendimento, sua outra e pessoal paisagem.
Tolerância e respeito às diferenças
E fiquei a pensar como nosso mundo e nosso Brasil precisam aprender com esta atitude de tolerância e de respeito às diferenças. Podemos divergir em quase tudo, nas questões as mais cruciais, e nos amarmos mesmo assim? Pasolini e Andrea, em suas andanças e diálogos, sinalizam positivamente. E me ocorre ainda a história de um sacerdote italiano, integrante de uma família de dez irmãos, que comportava de tudo: sacerdotes, democratas-cristãos, comunistas. E todos, segundo ele, sentavam-se à mesa, aos domingos, e conversavam animadamente.
Nessa direção da tolerância, não há como não louvar a posição, as iniciativas práticas e a produção intelectual, mais do que religiosa, humanista, do Papa Francisco. Vide as iniciativas recentes em prol da paz na Ucrânia. Retoma ele a tradição do Papa João XXIII que, entre outras coisas, convidou artistas e escritores ateus, com sua bagagem liberal e de esquerda, para se reunirem em Assis, em 1962, e conversarem sobre a cultura cristã.
Consta que Pasolini, em seu quarto de hotel, durante a viagem com Andrea, se deparou com uma brochura do Novo Testamento e leu todos os Evangelhos, quando, então, se decidiu pela filmagem de Mateus.
Seu filme foi dedicado a João XXIII.
1 “Arcaísmo e Cinema no Evangelho de Pasolini”, de Roberto Acioli de Oliveira, publicado em https://www.rua.ufscar.br/arcaismo-e-cinema-no-evangelho-de-pasolini/
Texto de autoria de Solange Peirão, historiadora e diretora da Solar Pesquisas de História.
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Ficha técnica:
O Evangelho Segundo São Mateus | Il vangelo secondo Matteo | 1964 | Itália, França | 137 min | Direção e roteiro: Pier Paolo Pasolini | Elenco: Enrique Irazoqui, Martherita Caruso, Susanna Pasolini, Marcello Morante, Mario Socrate, Settimo di Porto, Alfonso Gatto.