O cinema brasileiro de gênero costuma sofrer retaliações do público e da crítica locais. Esse desagravo reflete o trauma da colonização, como se o Brasil devesse fechar suas portas à cultura globalizada. O Quatrilho (1995), de Fábio Barreto, sempre sofreu com tal desaprovação, embora ainda hoje seja uma das poucas produções nacionais a disputar o Oscar de melhor filme internacional (em língua estrangeira, na época). Até mesmo Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, é malvisto por muitos não obstante seu sucesso de bilheteria e de crítica internacional. Mas, a indústria precisa sobreviver, e filmes de gênero, desde que bem-feitos, são parte essencial desse processo – afinal, não dá pra se sustentar só com Júlio Bressane.
Uma noite de pesadelo
O Homem Cordial chega aos cinemas anos depois de sua estreia mundial em 2019 no Cairo International Film Festival. Mas ainda continua atual no seu tema, que toca na violência policial e na influência cega das redes sociais. Tem, por isso, potencial para agradar um público amplo visto que traz a atração dos filmes de gênero em sua essência. Na verdade, explora um subgênero, aquele em que a ação toma rumos descontrolados durante uma só noite. E pode gerar comédias, como Uma Noite de Aventuras (Adventures in Babysitting, 1987), de Chris Columbus, e A Noite do Jogo (Game Night, 2018), de John Francis Daley e Jonathan Goldstein.
Mas O Homem Cordial se aproxima mais de Depois de Horas (After Hours, 1985), excluindo todos os detalhes cômicos desse filme de Martin Scorsese. Quem vive uma noite de pesadelo aqui é Aurélio (Paulo Miklos), um cantor de rock veterano que de repente vê todo mundo contra ele depois que ele defende um menino de onze anos acusado de furto e isso resulta na morte de um policial (o que será devidamente elucidado somente na conclusão do filme). Então, sua jornada desesperada começa com as vaias que interrompem o seu show, e depois, como no filme de Scorsese, ele se desloca pela cidade e se depara com outros personagens, alguns a favor e outros contra ele. Em certo momento, ele passa o perigo de ser linchado, como aconteceu com o Paul Hackett de Depois de Horas.
Tensão sempre presente
Porém, o pesadelo de O Homem Cordial parece até mais perigoso e real. Afinal, Aurélio transita pela periferia de São Paulo, e não pelo Soho de Nova York. Há a ameaça sistêmica do playboy que quer causar polêmica nas redes sociais às custas dele, mas o maior terror são os policiais justiceiros que querem vingar a morte do colega, sem nem mesmo investigarem o que de fato aconteceu – e esse é um dos piores temores quando as pessoas querem fazer justiça com as próprias mãos.
O filme, enxuto, permite rápida vazão ao enredo que se desenvolve rapidamente. Dessa forma, ajuda a assistirmos sem nos incomodarmos tanto com o uso exagerado do fundo desfocado em praticamente todas as cenas. Não existe um motivo em prol da narrativa para isso, parece ser apenas uma má decisão de fotografia. Na verdade, até atrapalha, pois as filmagens em locações nos instigam a ver o que acontece no entorno, e o desfoque impede essa investigação. A fotografia, sempre escura, aliás, incomoda. Além disso, a trama não apresenta um incremento gradual dos apuros do protagonista. Começa dessa forma, mas perde esse prumo, e o maior perigo (a abordagem policial clandestina) surge de repente, sem resolver a questão com o playboy.
De qualquer forma, embora não seja um primor de direção e roteiro, O Homem Cordial prende o interesse do público do início ao fim. A tensão se mantém sempre presente, sem trégua para qualquer tipo de alívio, e o filme ainda tem sorte (mas a nossa sociedade não) de os problemas que o enredo levanta continuarem a ser de primordial relevância.
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Ficha técnica:
O Homem Cordial | 2019 | 83 min | Brasil | Direção: Iberê Carvalho | Roteiro: Pablo Stoll, Iberê Carvalho | Elenco: Paulo Miklos, Thaíde, Dandara de Morais, Thalles Cabral, Theo Werneck, Fernanda Rocha, Bruno Torres, Murilo Grossi, Mauro Shames, Felipe Kenji, Tamirys O’Hanna, André Deca.
Distribuição: O2 Play.
Leia também a crítica de O Homem Cordial por Sérgio Alpendre.