O Orfanato, novo filme da escritora e diretora afegã Shahrbanoo Sadat , estreia no Brasil direto no streaming. A partir do próximo dia 03 de dezembro de 2020, o filme estará disponível no NOW e no VIVO PLAY. Leia a crítica do filme aqui.
O filme foi exibido na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes. Percorreu tambémos festivais de Munique, Bruxelas, Sarajevo, Chicago, Londres, Busan e levou o Arau de Ouro de Melhor Filme no Festival de Reyjavik.
O personagem principal do filme é o jovem de 15 anos Qodrat, fã de Bollywood que mora nas ruas de Cabul, no final dos anos 80. Ele vende ingressos de cinema ilegalmente e sonha acordado com cenas favoritas dos filmes indianos. Um dia, ele é levado pela polícia para o orfanato soviético. Porém, em Cabul a situação política está mudando e Qodrat e todas as crianças querem defender sua casa.
“Não se pode questionar o presente se não souber o passado. Existem vários filmes sobre o Afeganistão hoje e garanto que o mundo todo saiba que existe um conflito ali. O que me interessa é cavar o passado para encontrar onde toda a bagunça realmente começou.”, diz a diretora.
Pentalogia da diretora
O Orfanato é a segunda parte de uma pentalogia planejada por Shahrbanoo Sadat, iniciada com Lobo e Ovelha. Ela se inspira no diário não-publicado de Anwar Hashimi, que interpreta o supervisor do orfanato.
No longa, a diretora, uma das novas vozes do cinema do Afeganistão, evoca com sensibilidade o mundo interior do protagonista e o turbulento clima político do país na época. Misturando o realismo com o estilo musical de Bollywood, Sadat apresenta uma fábula sobre o amadurecimento, que também fala da história do Afeganistão.
“O filme é baseado nas memórias de meu amigo Anwar, que me levaram a uma jornada pela história do Afeganistão nos últimos quarenta anos, do ponto de vista inocente de um órfão. Ele era uma criança presa a uma guerra que não era sua. É exatamente o que sinto vivendo hoje no Afeganistão. O orfanato é um dos poucos lugares em todo o país onde todos vivem juntos, não importa a religião ou etnia”, observa a diretora.
Sadat complementa: “Anwar passou 8 anos de sua vida em um orfanato. Em sua autobiografia, há várias páginas repletas de personagens, eventos, muita história, vários nomes de pessoas e lugares que só faziam sentido para um público afegão. Li as páginas várias e várias vezes e lutei muito comigo mesma para encontrar o equilíbrio certo entre o que aconteceu e o que realmente deveria acontecer no filme.”
Roteiro
Sobre a elaboração do roteiro, ela explica: “Eu queria torná-lo facilmente compreensível para um público internacional, porém sem me esquecer do público afegão. Tornei o período mais curto, mesmo que a história comece em 1989 e termine com os Mujahideen assumindo Cabul em 1992. Mantive o tempo fictício para que os personagens não crescessem, mas pudéssemos sentir que o tempo passou. Além disso, reduzi o número de personagens. Às vezes, misturei diferentes histórias e personagens para torná-las minhas. As músicas dos filmes de Bollywood são a maior parte do que adicionei à história de Anwar, mas Anwar era realmente um grande fã de Bollywood e vendeu ingressos de cinema ilegalmente.”
Confira outros trechos da entrevista com a Shahrbanoo Sadat, divulgada pela distribuidora Supo Mungam Films.
Você usa muita gramática cinematográfica de Bollywood no filme. Como você teve a ideia de criar suas próprias sequências de Bollywood?
Bem, Bollywood é uma indústria de filmes gigantesca na minha parte do mundo e a amizade entre Afeganistão e Índia a tornou ainda mais forte. Quase todos os afegãos sabem falar urdu porque assistem muitos filmes indianos. Talvez a década de 1980 tenha sido a época de ouro para isso, porque tínhamos salas de cinema e havia paz ao menos em Cabul, a capital.
No Afeganistão de hoje, existem tantos “filmes Z” sendo produzidos um atrás do outro, influenciados por Bollywood. Portanto, a ideia não estava muito longe de mim. Além disso, o fato de Anwar ter vendido ingressos de cinema ilegalmente e ser um grande fã de Bollywood fez com que essa ideia se encaixasse no filme.
Bollywood e Afeganistão
A reação apaixonada do público enquanto assiste a um filme de Bollywood real no início do filme é incrível. Qual foi o significado da cultura de Bollywood no Afeganistão durante os anos 80? Isso mudou hoje em dia?
Os afegãos não são pessoas expressivas, mas adoram Bollywood, que lhes leva emoção e drama. Eu amo esse contraste. Talvez seja por isso que o amor por Bollywood tenha se mantido o mesmo. É a única maneira de se expressarem. A única diferença é o tempo. Os anos 80 foram uma época de ouro, por causa da existência de salas de cinema em toda Cabul. Agora as pessoas assistem a filmes na internet ou compram DVDs piratas. O que Bollywood oferece fascina as pessoas. Sonhar, viver uma vida perfeita que não é possível na realidade, amizade, amor e alegria. Essas são coisas que pessoas sentem falta em suas vidas, especialmente quando se mora em um país em guerra como o Afeganistão, onde dificilmente existem direitos básicos. Na minha cabeça, faz sentido esse interesse.
Os órfãos do filme vêm de diferentes origens étnicas e religiosas. Você queria que o orfanato representasse a diversidade do Afeganistão?
O orfanato é um dos poucos lugares em todo o país onde todos vivem juntos, não importa a religião ou etnia. Eu estava especialmente interessada neste fato, quando começou a guerra civil étnica no Cabul, no início dos anos 90, e muitos se mataram apenas porque não pertenciam à mesma etnia.
A produção de O Orfanato
Você poderia nos contar sobre a produção do filme? Quais foram as dificuldades que você encontrou durante o processo de produção?
Eu filmei no Tajiquistão, um dos países pós-soviéticos na Ásia Central, o vizinho do norte do Afeganistão, onde os lugares se parecem com o Afeganistão. Contratei atores não profissionais do Afeganistão e os enviei para o Tajiquistão. Obter passaportes e vistos para os atores é sempre muito difícil. O Tajiquistão negou a emissão dos vistos e tivemos de solicitar uma segunda vez.
Recebemos financiamento regional da Alemanha e Dinamarca para filmar as cenas de Bollywood na Rússia lá. Mas conseguir o visto Schengen é impossível para os afegãos. Não há embaixada em Cabul que emite mais vistos, então para conseguir o visto Schengen tivemos de viajar para o Paquistão e para viajar para lá precisávamos de vistos para o Paquistão. E isso também é complicado, já que emitem vistos dependendo do humor e também da situação política atual entre os dois países. A embaixada dinamarquesa negou nossos vistos na primeira vez que solicitamos. Não pudemos continuar a filmagem e tivemos de fazer uma pausa de quatro meses entre as filmagens no Tajiquistão e Europa para conseguir os vistos para o elenco principal.
O outro grande desafio é que me sinto solitária ao criar um Afeganistão em outro país. Não teve nenhum diretor de arte envolvido no projeto e Anwar e eu conseguimos cada acessório e roupa por nós mesmos. Mais tarde conseguimos ajuda, mas ainda assim transformamos um bordel tadjique inteiro em um orfanato com um grupo de trabalhadores da construção civil, com quem trabalhei antes no meu filme anterior Lobo e Ovelha. Lá fizemos uma vila afegã inteira.
Cineastas no Afeganistão
Como você acha que a direção de filmes pode ser incentivada no Afeganistão?
Existem várias empresas de produção registradas e vários cineastas fazendo filmes, desde filmes Z a curta-metragens e documentários, também alguns filmes de ficção de longa-metragem. Acredito que o movimento é lento, mas existe. Precisamos de tempo para criar a nossa própria linguagem de cinema. Acho que os cineastas afegãos estão confusos e perdidos entre o que querem contar e o que pensam que o mundo espera que eles contem. Espero que um dia possamos ser os narradores das nossas histórias. Tudo bem para mim que os cineastas internacionais estejam atraídos pelo Afeganistão, mas o que é mostrado do Afeganistão é muito clichê, superficial e está a milhas de distância da realidade de lá. Meu desejo é que um dia, em um futuro próximo, cineastas afegãos ousem compartilhar suas histórias da maneira que desejam contá-las.
Jovens atores
Você contratou alguns dos mesmos jovens atores não profissionais de seu primeiro filme “Lobo e Ovelha”. Você os viu crescer. Qual o tipo de relacionamento que você desenvolveu com eles?
Fiquei muito surpresa quando trabalhei com Qodrat pela segunda vez no set. Percebi que ele estava mais velho agora e a maneira que trabalhei com ele em Lobo e Ovelha não funcionava mais. Dessa vez, nosso relacionamento era mais profissional; eu confiava nele e conversava com ele sobre as cenas com mais detalhes. Ele é inteligente e muito paciente.
Além de seu contexto histórico, o filme também lida com o amadurecimento dos diferentes órfãos. Esta parte estava totalmente escrita ou você deixou os jovens improvisarem?
Tudo estava escrito. Apesar de eles terem improvisado bastante, no final é bem semelhante ao que eu escrevi.
Explicando o final do filme
A conclusão do filme permanece em aberto com uma espetacular abordagem onírica. Por que você optou por terminar dessa maneira?
Essa é uma resposta fácil! Eu queria que as crianças ganhassem! Todos nós sabemos o que acontece em uma guerra. Mulheres, crianças e civis são mortos e perdem. Não vi sentido em repetir essa situação mais uma vez sendo que eu tinha o poder de reescrever isso.
Qodrat adora se imaginar como um personagem de filme. Você era assim quando adolescente? Que papel o cinema desempenhou quando você estava crescendo?
Eu gosto de Qodrat. Ele é esperto e acredito que ele possa conseguir uma carreira de ator um dia. O cinema chegou à minha vida muito tarde. Entrei em um cinema verdadeiro pela primeira vez quando eu tinha 20 anos. Eu tive uma infância diferente.
Para concluir, você planejou originalmente dirigir cinco filmes inspirados pela história do seu amigo. Ainda é um projeto atual? Ou você tem outros desejos de direção?
A parte um (Lobo E Ovelha) e a parte dois (O Orfanato) estão prontas. Estou trabalhando na terceira e quarta partes agora. Todas essas histórias são inspiradas na obra de Anwar. Ele tenta publicar seu diário e existe um crescente desejo dentro de mim de fazer um filme que não seja baseado e/ou inspirado pelo trabalho dele. Farei isso um dia, quando estiver mais velha, talvez quando terminar essa pentalogia.
Ficou interessado? Então, leia a crítica do filme aqui.
Trailer:
Ficha técnica:
O Orfanato (Parwareshghah) 2019, Afeganistão/Dinamarca/Alemanha/França, 90 min. Direção/Roteiro: Shahrbanoo Sadat. Elenco: Qodratollah Qadiri, Sediqa Rasuli, Masihullah Feraji, Hasibullah Rasooli, Ahmad Fayaz Osmani, AnwarHashimi
Gênero: Drama/Fantasia/Musical
Classificação Indicativa: 14 anos
Distribuição: Supo Mungam Films