De vez em quando aparece alguma coisa especial no depósito de entulho que é a Netflix, para nos fazer pensar que vale a pena pagar a alta mensalidade que eles cobram. Em 2018, provavelmente, a melhor de todas essas coisas deu as caras. O Outro Lado do Vento (The Other Side of the Wind, 2018) conta a história de um filme que está sendo produzido e das pessoas em torno do cineasta que o dirige, e foi o longa que Orson Welles começou a rodar em 1970, terminou em 1976 e passou o resto da vida (faleceu em 1985) tentando finalizá-lo, esbarrando sempre em obstáculos como falta de dinheiro e algumas questões legais (pelo que entendi, de direitos autorais e disputas entre os produtores e financiadores que se envolveram com o filme).
O letreiro inicial nos informa bem: é um retorno à mesma Hollywood que havia cortado suas asas após Cidadão Kane (1941). Mas mesmo naquele rico momento que era o cinema americano dos anos 1970, com liberdade nunca antes vista para jovens diretores como Martin Scorsese, Brian De Palma e Dennis Hopper, que levaram a Hollywood propostas ousadas em suas ambiguidades e visões críticas da sociedade americana e da indústria do entretenimento, um filme como este não seria bem-vindo pelos estúdios, por sua incrível liberdade e seu texto demasiado incoerente, para retornarmos à expressão cunhada por Robin Wood ao se referir aos filmes americanos ambíguos e de finais abertos da época.
Suas imagens são desconexas, desafiam interpretações, são muito mais de vanguarda do que narrativas e por vezes elas parecem mais brigar com o espectador do que maravilhá-lo. Dá para entender por que ficou inacabado em seu tempo, e, também, por que alguém teria de terminá-lo, custe o que custasse.
Desvio de Hollywood
O Outro Lado do Vento, porém, não era de Hollywood. Dessa água Welles não beberia mais. Vivendo em Los Angeles desde 1970, mas munido de uma câmera 16 mm, da força intelectual de sua companheira Oja Kodar e de um jovem diretor de fotografia, Gary Graver, que ofereceu seus serviços gratuitos para ficar do lado de um gigante, Welles filmou muito nos últimos quinze anos de sua vida (1970-1985), não só nos EUA, mas na França, na Espanha, na Itália, e de tudo que fez, só dois filmes constam como acabados em sua filmografia: os extraordinários F for Fake (1973) e Filming Othelo (1978).
O restante de todo o material faria parte de um intercambiável manancial de imagens (não só em 16 mm, mas também em super 8, 35 mm e até vídeo) que só o próprio Welles conseguiria encaixar. Preferia trabalhar no baixo orçamento a na independência total, como também no caos da criação, mesmo que corresse o risco da incompletude, do que ter novamente um filme tirado de suas mãos no corte final, como aconteceu com Soberba (The Magnificent Ambersons, 1942), seu segundo longa.
O projeto mais ambicioso dessa fase é mesmo O Outro Lado do Vento, e como tal, demorou 42 anos, do término das filmagens até o corte final, para chegar ao público, graças ao caminhão de dinheiro da gigante do streaming, que desembaralhou os percalços legais que o filme acumulava e reuniu amigos e parceiros do diretor para chegar a uma versão que fizesse jus ao que Welles pretendia fazer. O quanto chegaram perto disso, não temos como saber. Mas por entrevistas do próprio Welles e de gente que o conhecia bem, podemos supor que em espírito o resultado é no mínimo respeitoso com a vontade criativa de seu gênio. Voltarei a esse assunto mais adiante.
A masculinidade e o medo da castração
“Homens não gostam de nós”, diz a personagem de Lilli Palmer na festa de retorno do famoso diretor Jake Hannaford (John Huston) a Hollywood. “Homens gostam de homens”, continua. “E mulheres nos afastam”, responde Hannaford.
Chuck Berg diz, em The Encyclopedia of Orson Welles, que por influência de Oja Kodar o filme se tornou um autoconsciente ensaio sobre a masculinidade. Esse diálogo nos faz pensar que esta suposição esteja correta, e subestimar a importância de Oja Kodar no filme e nesse período da vida de Orson Welles seria um equívoco. Sua atuação, aliás, comanda o filme, o leva para entendimentos mais ricos. Era empoderada muito antes de se falar em empoderamento feminino.
O filme dentro do filme, aliás, é todo sobre a masculinidade e o medo da castração, com a voz ameaçadora do além brincando com esse medo. Oja Kodar tem seu colar preso no pênis do amante. A única maneira de soltá-lo é usando uma tesoura. Mas para cortar o quê? – brinca a voz do além. Ela corta o colar, e vemos as minúsculas bolinhas que o formavam se espalhando embaixo da cama sem colchão onde o casal estava. Em uma cena emblemática, pouco antes, Oja Kodar coloca um dedo no meio das pernas de uma boneca, como se fosse um pênis. Ela pega a tesoura e ameaça cortar o dedo, mas desvia e corta os cabelos da boneca. Do mesmo modo, logo depois de cortar o colar, ela cortará os cabelos do amante, num dos espelhamentos mais belos do filme.
Mas O Outro Lado do Vento é também sobre muitas outras coisas. É, por exemplo, sobre cinema e independência, sobre discípulos e continuadores. Sobre autoria em cinema e sobre atriz-autora. Sobre os anos 1970 e o que restou da década anterior. É, talvez, uma fábula sobre a liberdade em cinema, em que o espectador é convidado a montar ele também a sua versão do filme.
Novos grilhões do passado
O filme agora terminado de Welles é uma bomba que se multiplicou em estilhaços. Por sua própria essência e estrutura, tem de sobra tanto inspiração – belíssimos planos em Eastmancolor, pertencentes ao filme que Hannaford está fazendo – quanto variações de tom e qualidade cinematográfica (as inúmeras discussões entre Hannaford e seus comparsas, amigos e jornalistas cansam um pouco, mesmo com o talento de Huston, sobre o qual falarei em seguida), e carecia de alguma grande mente artística para ser completamente realizada. Por vezes, o contracampo de uma cena parece pertencer a um outro contexto, ter sido filmado para outro filme inacabado, tamanha a variação nos enquadramentos e na luz.
As citações e as brincadeiras com outros diretores sugerem uma estranha sintonia com Filme Demência (1985), de Carlos Reichanbach. Há ainda alguma semelhança com This Sporting Life (Abel Ferrara, 2020), sobretudo na ideia dos bastidores de lançamento de um filme, que talvez denote mesmo uma influência de Welles sobre Ferrara.
O desafio de terminar um filme desse quilate, mais de 30 anos após o desaparecimento de seu principal criador, era gigante, parecia até impossível. Em Orson Welles at Work, livro de Jean-Pierre Berthomé e François Thomas publicado em 2006 pela editora da Cahiers du Cinéma, os historiadores escrevem sobre o filme: “Nenhuma versão acabada, por mais escrupulosa que seja a sua feitura, pode oferecer mais do que uma distante aproximação de uma visão que podemos conhecer somente por fragmentos”. Welles em sua fase final filmava e pensava nos filmes de modo que ninguém mais poderia acabá-los a não ser ele mesmo.
O resultado da empreitada que foi bancada pela Netflix, à luz desse entendimento, pode parecer mesmo uma distante aproximação, mas nos permite dizer que foi bem-sucedido, e de alguma forma flagra a essência de Welles com alguma acuidade.
Kodar e Huston
Oja Kodar, já escrevi, é uma força. Mas ela está no filme dentro do filme, e por isso não o conduz, embora dê o tom onírico que é mais interessante no conjunto. A trama principal, em preto e branco (nem sempre, e isso confunde os que procuram explicações para a alternância entre cor e preto e branco) é levada pelo talento de John Huston, realizador irregular, ator sublime.
Huston é uma espécie de alter-ego de Welles. Um diretor que já teve melhores dias e agora persegue o principal: liberdade. Huston interpreta Hannaford como Welles interpretou o diretor de La Ricotta, de Pasolini, um bonachão hedonista que ama cinema muito mais do que a possibilidade de fama e fortuna. Huston não tem o porte físico dominador de Welles, nem sua voz, mas tem carisma, um sorriso que nos conquista e nos diz que cinema é mais importante, afinal. “[Hannaford] É o Murnau americano. Quem é Murnau? Não lembro”. Apresentado dessa forma, fica clara a ligação entre Hannaford e Welles, que amava imagens expressionistas e a habilidade de Murnau nas movimentações de câmera e na profundidade de campo, assim como fica claro o desprezo de Welles pela falta de cultura cinematográfica dos homens de cinema da época.
Em todo caso, a parte de Kodar é mesmo superior. As imagens são geralmente maneiristas, de enquadramentos impressionantes que remetem a Antonioni e ao cinema japonês. Em dado momento, Hannaford discursa: “Apresentamos um prêmio à outra metade de O Outro Lado do Vento”. Corta para Oja Kodar, que o olha seriamente. Ele completa: “A melhor metade”. Quem irá discordar disso?
A melhor coisa da versão acabada de O Outro Lado do Vento é que nos transporta para aquele período de convulsão do cinema americano por meio da visão de um diretor que operava, quase secretamente e após muitos anos de grande cinema, uma nova convulsão dentro da convulsão.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
O Outro Lado do Vento | The Other Side of the Wind | 2018 | 122 min | Direção: Orson Welles | Roteiro: Orson Welles, Oja Kodar | Elenco: John Huston, Oja Kodar, Peter Bogdanovich, Susan Strasberg, Norman Foster, Robert Random, Lilli Palmer, Edmond O’Brien, Mercedes McCambridge, Cameron Mitchell.
Distribuição: Netflix.