O Sul (El Sur) é um filme que fala sobre a relação entre pai e filha. Na verdade, sendo um filme de memórias, tem semelhanças interessantes com o queridinho da cinefilia na temporada, Aftersun (2022). Se aproximando sem ser pariforme, entendi que um comentário sobre o segundo longa-metragem de Víctor Erice se faz válido. É também uma obra pouco repercutida com o grande público, e vi nisso uma oportunidade de dar mais espaço ao bom cinema espanhol.
Quando crianças, vemos nossos pais como deuses. À medida que a juventude bate na porta, começamos a perceber o véu idealista na imagem que tínhamos. O Sul narra a reflexão de uma mulher chamada Estrella sobre sua relação de infância com seu pai, tentando compreender a construção dos mitos que o edificou em sua memória. No meio do caminho, aponta as rotas de colisão da realidade com sua idealização do homem que a criou.
A história do filme se diferencia de Aftersun principalmente por seu caráter místico. A protagonista expõe em sua voz já adulta: “Meu pai era capaz de fazer coisas que os outros viam como milagres”. Mas mais do que expor gratuitamente, Erice filma o anagógico, o captura em suas composições.
Poucos planos são tão bonitos quanto o da revelação do pêndulo, objeto assumido como mágico pela criança que o recebe. Ao tomar a perspectiva de uma memória fragmentária, o diretor, junto ao talentoso fotógrafo José Luis Alcaine (não surpreende que seja parceiro frequente de Pedro Almodóvar) desperta imagens diretamente do imaginário.
Memória parcial
O tempo é uma delimitação sistemática na construção estética e sensorial proposta pela obra. Tanto este quanto o longa de estreia de Charlotte Wells lidam com a memória, mas ambos trabalham com ela de forma diferente. A película espanhola parece evocar uma abstração presente nas memórias, uma inevitável ficcionalização dos fatos, espécie de mistura entre expectativa, admiração e o que efetivamente aconteceu.
Claro que o filme de 2022 também traz isso à tona, mas enquanto parece mais focado em absorver certa nostalgia de uma época de acontecimentos pendentes, ainda confusos, o de 1983 assume uma posição de abstração, isto é, se suspende no ar e reconhece o desgaste de uma memória parcial. A memória como lembrança de pequenos gestos, mas incapaz de conceber pormenores de um total, à deriva num mar de conjecturas.
As belas composições visuais de Víctor Erice tornam isso sobrejacente. Nas filmagens internas, os tons escuros assumidos com frequência no terceiro plano, achatando a profundidade de campo, nos mostram a intangibilidade destes pequenos detalhes, que de fato se perdem quando lembramos de algo. Isso também é verdade nas charmosas externas, onde o tom esverdeado (quase bucólico) é explorado sem ser esmiuçado. Interessante notar como esse desfiamento da memória é por vezes assumido no voice over.
Aliás, a relação temporal do filme é também patente nas transições de cenas, sempre muito marcadas, com telas pretas, fade-outs e dissoluções, sempre alertando passagens no tempo. Mas é curioso perceber que além de algumas sequências, as memórias podem muito bem estar desalinhadas, sinuosas na cabeça da mulher que as conta.
Minimalista e sensível
Em alguns momentos, O Sul lembra o cinema de Júlio Bressane, pela disposição minimalista de suas composições. Claro que as interpretações naturalistas do espanhol se divergem fortemente do brasileiro, partindo de premissas e propostas bem diferentes, mas é interessante notar como, se articuladas de formas variadas, a desconstrução do (tido como) elementar no pró-fílmico pode gerar sensações diferentes no espectador.
O Sul é um filme extremamente sensível, que articula sobre o lugar da memória na construção do imaginário. Mais do que isso, é um filme sobre paternidade e divinização – e desconstrução do endeusamento -, não por acaso o longa termina com uma viagem da já jovem Estrella ao sul, na busca latente da descoberta do passado de seu pai.
Texto escrito pelo crítico e universitário de cinema Enrico Mancini, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
O Sul | El Sur | 1983 | 95 min | Espanha, França | Direção e roteiro: Víctor Erice | Elenco: Omero Antonutti, Sonsoles Aranguren, Icíar Bollaín, Lola Cardona, Rafaela Aparicio, Aurore Clément.