Scott Derrickson subiu alguns degraus em Hollywood dirigindo o blockbuster Doutor Estranho (2018). Era um ligeiro progresso em relação aos longas anteriores, mas tinha a óbvia limitação das inúmeras concessões necessárias em produções dessa grandeza.
Seu movimento seguinte, contudo, foi de retorno ao gênero que o revelou, o horror. Mas O Telefone Preto (The Black Phone, 2021) tem fortes ingredientes de drama juvenil. A escola, o bullying, o pai alcoólatra, a irmã dotada de clarividência, tudo que está ao redor de Finn o leva ao rápido amadurecimento. É essa, de longe, a faceta mais interessante do filme.
Até que Finn se torna a nova vítima do sequestrador de crianças conhecido por dirigir uma van preta e por deixar balões pretos como pista. No cativeiro, há um telefone preto que, segundo o sequestrador, está quebrado. Mas Finn começa a receber chamadas por ele. Seriam do além? Ou alguma brincadeira do sequestrador? Enquanto o telefone dá algumas dicas do que ele deve fazer, sua irmã Gwen tem sonhos reveladores.
O enigma se apresenta a Finn, que deve decifrá-lo para conseguir fugir. Os sonhos de Gwen e alguns flashbacks de origens diversas, mostrados com um tratamento de imagem que se assemelha a um velho filme em super 8, são boas pistas que eles podem decifrar para resolver o problema.
Jogue o jogo
Com isso, o filme tem o aspecto claro de um jogo, e Finn é obrigado a jogá-lo se quiser sobreviver. O problema é que esse tipo de filme-jogo precisa de um roteiro muito bem pensado em todas as etapas. Joseph L. Mankiewicz o fez em Trama Diabólica (Sleuth, 1972). Sidney Lumet o seguiu em Armadilha Mortal (Death Trap, 1982), embora já com alguma diluição.
Muitos outros tentaram, sem sucesso, incluindo Cubo (Vincenzo Natali, 1997), Maze Runner (Wes Ball, 2014) e a franquia Jogos Vorazes, com a exceção do segundo longa, dirigido por Francis Lawrence em 2013, que chegou a um resultado bem interessante e escapa do fracasso a que me refiro. De todo modo, Derrickson é mais um a fracassar, ainda que parcialmente.
O fantástico
O problema maior de O Telefone Preto é a falta de ideias para a criação de uma atmosfera de tensão. A aparição dos outros sequestrados, durante as conversas telefônicas, como fantasmas que só o espectador vê (exceto por dois que são vistos, em um breve estágio das conversas, por Finn), é um dos pontos mais fracos da concepção visual do diretor.
A narrativa fantástica, segundo Tzvetan Todorov, implicava na dúvida, por parte do receptor, entre duas possibilidades: se os fenômenos estranhos foram produzidos pela mente ou pela existência do sobrenatural. Dizia ele que o sucesso de uma trama de horror baseava em sustentar o maior tempo possível essa dúvida.
No filme, logo entendemos que o telefone materializa as vítimas anteriores do sequestrador e funciona então como um acumulador de experiências. Por isso entramos logo no terreno do sobrenatural, o que enfraquece um pouco tanto a ideia inicial do drama juvenil quanto qualquer dúvida que o espectador possa ter.
Estamos, contudo, diante de uma alegoria. A ligação de um amigo, mais perto do fim, é esclarecedora (e, por sinal, a única materialização causada pelo telefone preto que consegue alguma potência visual para além do susto ou do frio na barriga eventual): para vencer o jogo, Finn precisa encontrar as forças dentro de si. O mundo fora do cativeiro é bem mais interessante, tanto para Finn quanto para o espectador, e por isso o que deveria nos amedrontar, antes nos provoca decepção.
Mas é também pela alegoria, auxiliada por estranhos espelhamentos e superando o aspecto estritamente lúdico, que o filme encontra seu valor no final.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
O Telefone Preto | The Black Phone | 2021 | 1h43 | EUA | Direção: Scott Derrickson | Roteiro: Scott Derrickson, Robert Cargill | Elenco: Mason Thames, Madeleine McGraw, Ethan Hawke, Jeremy Davies, E. Roger Mitchell, Troy Rudeseal, James Ransone, Miguel Cazarez Mora.
Distribuição: Universal.