“Pai e Filha” exemplifica o cinema padronizado e consistente do diretor Yasujiro Ozu, tanto na forma de filmar como em sua temática.
O roteiro, co-escrito por Ozu e seu constante parceiro Kogo Noda, aborda o dilema de Noriko (Setsuko Hara), que sofre pressões da amiga, da tia, de todos enfim, para que se case. Com 27 anos, ela vive com o pai viúvo (Chishu Ryu) e se sente feliz assim, e não vê motivos para o casamento. Ao mesmo tempo em que acompanhamos o cotidiano de Noriko, se aproxima o momento em que ela a convencem a conhecer um rapaz “parecido com Gary Cooper”, indicado pela tia para se casar. A resistência da moça ao miai (casamento arranjado) somente é quebrada através de um plano do pai, que se aproveita do ciúme que ela sente por ele.
O assunto é praticamente idêntico a de outros shomin-geki (filmes sobre pessoas comuns) de Ozu. Inclusive na repetição dos atores principais de outros títulos de sua filmografia. Setsuko Hara normalmente interpreta a filha – muitas vezes com o nome Noriko – e Chishu Ryu costuma assumir o papel de seu pai. A constante visita aos dramas familiares em momento de dissolução foca o recorte também recorrente da preocupação em casar a filha que se aproxima dos 30 anos.
A música tranquila e o ritmo cadenciado, criado por cortes segundos antes e após a ação da cena, enfatizam o tema cotidiano da história. Os pillow-shots, que são as breves tomadas, geralmente sem pessoas, que intercalam as sequências, dão ainda tempo para o espectador limpar sua mente do que assistiu antes para absorver melhor o que verá em seguida. A encenação do teatro Nô, que aparece nas telas por vários minutos, retrata o andamento do filme, porque o ator quase não se move.
A ousadia da câmera estática
E a câmera imóvel, posicionada à altura de uma pessoa sentada no chão – hábito dos japoneses dentro de casa -, representa a característica mais facilmente identificável do estilo Ozu, que com isso consegue um enquadramento aperfeiçoado até os mínimos detalhes. Em “Pai e Filha”, a câmera ainda se movimenta um pouco. Por exemplo, há travellings na sequência do passeio de bicicleta de Noriko e seu amigo, e quando a moça e o pai caminham pela rua em calçadas opostas, após uma discussão. Além disso, uma arriscada tomada com a câmera no estreito espaço entre um trem em movimento e a mureta.
Esse ritmo lento não significa falta de ousadia do cineasta. Ozu quebra convenções do cinema clássico. A câmera estática não deixa de ser uma audácia, criticada por muitos à época, que procuravam reduzir o seu cinema a teatro filmado. Juntamente com essa não movimentação, o diretor filma os atores falando diretamente para a câmera, nas cenas de diálogo. Assim, evitando o comum esquema campo/contracampo, Ozu traz ao espectador maior envolvimento na conversa.
Porém, o maior atrevimento está na quebra da convenção do eixo, o que para muitos críticos era considerado um erro. Numa das cenas iniciais, o trem que leva Noriko e seu pai à cidade parte em direção à direita e no final corre para a esquerda. Quando ela conversa com sua amiga à mesa, primeiro vemos Noriko sentada à esquerda, e, em outro enquadramento posterior, à direita.
Simbolismos
O uso de simbolismos nas imagens também se destaca no filme. Após se irritar com o conselho de sua amiga Aya para que se case, Noriko sai enfurecida da casa dela. O pillow-shot subsequente mostra revistas despencando de uma pilha de livros, designando a quebra da harmonia da amizade entre as moças. Neste e em outros títulos de Ozu, vemos insistentemente a presença de roupas penduradas ou em manequins, o que pode representar tanto a imobilidade da câmera como dos papéis sociais das pessoas, este originando filmes com temas semelhantes.
No começo do filme, o pai tira seu paletó e o joga no chão, e Noriko rapidamente o recolhe para guarda-lo. O assunto do casamento da moça amadurece e, perto da metade da estória, o pai pega um objeto no chão do quarto de Noriko e o coloca sobre a mesa, significando que ele aceita a ideia de executar as tarefas domésticas. Já nas cenas finais, ele mesmo está pendurando seu paletó.
A transformação dos personagens principais não segue uma fórmula clássica, porque nenhum evento ou aventura grandiosos ocorrem para justificar a mudança. Esta surge como parte do processo da vida, como explica o próprio pai à filha. O ciclo dela com o pai já se encerra, e agora ela deve seguir seu caminho e construir a felicidade no casamento.
Humor
Além disso, há pitadas de humor, que colaboram com a sensação agradável de assistir “Pai e Filha”, apesar de ele ser essencialmente um drama. Um menino se revolta com o castigo imposto pela mãe e, assim que ela vira as costas, gesticula como se arremessasse uma bola contra ela. É uma gag que agrada a Ozu, e que aparece em outros de seus filmes, como em “Dia de Outono” (Akibiyori, 1960). Outro exemplo de seu humor aparece quando a tia encontra uma carteira no chão e, apesar de dizer ao irmão que pretende devolvê-la, sai correndo com ela quando vê a aproximação de um policial.
Por outro lado, o drama comove sem ser melodramático. Nesse sentido, Noriko sofre ao interpretar que seu pai se casará novamente, sentindo ciúmes por outra pessoa assumir o seu papel. Já o pai consegue enfim seu objetivo de casar a filha, cumprindo a obrigação que assume consigo mesmo para que não se torne um obstáculo à vida dela. Porém, ele também se entristece. Assim, as lágrimas correm dos olhos desses protagonistas em cenas tocantes. Sem gritarias nem músicas melosas. É Ozu retratando fielmente seu povo.
Ficha técnica:
Pai e Filha (Banshun, 1949) 108 min. Dir: Yasujiro Ozu. Rot: Kogo Noda e Yasujiro Ozu. Com Chishu Ryu, Setsuko Hara, Yumeji Tsukioka, Haruko Sugimura, Hohi Aoki, Jun Usami, Kuniko Miyake, Masao Mishima, Yoshiko Tsubouchi, Yoko Katsuragi, Toyo Takahashi, Jun Tanizaki, Ichiro Shimizu, Yoko Benizawa, Manzaburo Umewaka.
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