Pecadores (Sinners) só poderia mesmo ser criação de um cineasta engajado como Ryan Coogler, que assina como diretor e roteirista. Desde seu filme-protesto de estreia, Fruitvale Station (2013), sobre um jovem negro brutalmente assassinado por um policial, Coogler nunca deixa a questão racial de lado. Foi menos incisivo em Creed (2015), por entender que era a sua grande chance para entrar nas grandes produções de Hollywood. Deu certo, e pôde então voltar a acenar a bandeira em Pantera Negra (2018), quando pesou demais a mão, encontrando um equilíbrio melhor em Pantera Negra: Wakanda para Sempre (2022).
The devil
O equilíbrio entre narrativa e questão racial fica no limite em Pecadores, extrapolando um pouco em algumas de suas cenas. A premissa, acima de tudo, é genial. Coogler revitaliza um subgênero clássico do terror ao acrescentar a poderosa lenda do pacto com o diabo do músico de blues Robert Johnson (1911-1938). O filme A Encruzilhada (Crossroads, 1986), de Walter Hill, se inspira nessa história, mas numa versão que não valoriza suficientemente as origens negras.
A ideia do blues como a música do diabo nasce dos próprios músicos de blues. Basta lembrar da canção “Me and the Devil Blues”, de Robert Johnson. Mas, como Pecadores evidencia, ganha uma conotação preconceituosa por parte dos brancos, oriunda do temor das crenças africanas e da inveja pelo teor sensual dessa música. Por isso, após uma batalha apoteótica contra os seres do mal (a configuração deles é uma surpresa, portanto não mencionaremos aqui por enquanto), o protagonista precisa dizimar aqueles que, de fato, são ruins. Ou seja, os racistas, sejam eles assumidamente da Ku Klux Klan ou não.
Apesar do prólogo (para variar, um flash forward), quem leva o mal para a cidadezinha do Mississipi não é o jovem negro, Sammie Moore (Miles Caton), que toca o blues contrariando o pai que é pastor. O responsável é o irlandês já possuído e que escapa da perseguição dos indígenas para se juntar a um casal da KKK e formar um trio de música folk. O objetivo deles é invadir a noite de inauguração da casa noturna dos gêmeos Fumaça e Fuligem (ambos interpretados por Michael B. Jordan) para transformar todos em criaturas iguais a eles.
The blues
Antes de entrar no cinema fantástico, Pecadores embarca num divertido road movie pela região, quando os gêmeos recrutam os músicos (entre eles, Delta Slim, vivido por Delroy Lindo), e os contratados para prepararem e trabalharem na noite de abertura do salão de música que eles inauguram, montado num galpão adquirido com dinheiro sujo que ganharam em Chicago. O grupo reúne personagens peculiares, coadjuvantes marcantes facilmente reconhecíveis durante o grande confronto final.
Ryan Coogler presta uma homenagem não só ao blues, mas à música produzida por não-brancos. Segundo uma narração em off, essa música servia para aliviar a dor de uma vida sofrida. Dessa necessidade, surgiram o blues dos escravos negros, assim como as cantorias e ritmos dos povos indígenas e africanos. O louvor a essas criações ganha uma dimensão mágica na cena em que Sammy, Delta e outros músicos da casa ganham a companhia de artistas de gêneros que surgiriam no futuro (rock, rap, música eletrônica etc.), indicando que todos receberam a influências dessas músicas originárias.
Spoilers adiante
Esta crítica ficaria incompleta sem entrar na metade final de Pecadores. Portanto, quem quer preservar a surpresa, deixa para continuar a ler depois de ver o filme.
A preparação para a grande inauguração do empreendimento de Fumaça e Fuligem, que toma quase metade do filme, mantém o foco no blues. O processo de preparação e abertura da casa de blues é suficientemente interessante para manter o público engajado na história. Porém, a partir de determinado momento, a trama dá uma guinada que muda até o gênero do filme. Lembra Um Drink no Inferno (From Dusk Till Dawn, 1996), de Robert Rodriguez. Porém, no filme de Coogler as criaturas não apresentam aqueles típico dentes de vampiros. Na verdade, salvo alguns renascidos que sofreram deformações quando morreram, os vampiros parecem menos assustadores do que deveriam ser. Mas, talvez seja uma escolha do diretor, para enfatizar que os piores monstros são os brancos racistas.
Dessa forma inusitada, Coogler deixa sua mensagem antirracista com muita (até demais) evidência. Mas, a inspirada ideia de resgatar uma lenda do blues, gênero negro por excelência, e transformá-la num filme de vampiros coloca Pecadores num patamar superior dentro de sua filmografia. Em outras palavras, o diretor azeita sua receita de introduzir a questão racial dentro do cinema de gênero. E, assim como Buddy Guy (que faz uma participação especial na cena pós-créditos) continua com seu blues, música feita por negros para negros, Ryan Coogler segue com seu cinema feito por negros para negros.
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Ficha técnica:
Pecadores | Sinners | 2025 | 138 min. | EUA | Direção: Ryan Coogler | Roteiro: Ryan Coogler | Elenco: Michael B. Jordan, Hailee Steinfeld, Miles Caton, Jack O’Connell, Wunmi Mosaku, Jayme Lawson, Omar Benson Miller, Li Jun Li, Delroy Lindo.
Distribuição: Warner Bros. Studios.