Em recente texto divulgado pela Film Comment1, publicado em 14 de abril de 2022, a crítica de cinema Devika Girish usa o termo “planimetric” para analisar o filme A Garota e a Aranha (Das Mädchen und die Spinne, 2021), de Ramon Zürcher e Silvan Zürcher. Mas, o que significa “planimétrico”? A própria Girish explica: “Na cartografia, o termo se refere ao mapa que não possui relevo – os objetos são representados como se vistos de cima, achatados em figuras em um plano liso e suave. No cinema, uma composição planimétrica é um plano que enquadra o trabalhador da construção e Mara nas primeiras cenas (de A Garota e a Aranha). A câmera está perpendicular ao fundo; o foco está raso, para obscurecer a profundidade; e nosso olhar encontra o sujeito de frente. Não há ângulos nem nada oblíquo, somente confrontações diretas.”
David Bordwell
Voltando um pouco no tempo, encontramos um artigo chamado “Shot-consciousness”2, publicado em 16 de janeiro de 2007, pelo teórico David Bordwell. A fim de argumentar sobre sua constatação de que muitos críticos profissionais não estão interessados nos planos de um filme, Bordwell entra no conceito de “planimetric”.
Segundo o próprio, ele foi o primeiro a notar esse tipo de plano. Então, começou a chamá-lo de “mug-shot framing”, pois é como se costuma tirar fotos de uma caneca ou outro objeto qualquer. Mas, ao descobrir que o historiador Heinrich Wölfflin chamava isso de composição planimétrica, adotou o “planimetric”, ou planimétrico, se traduzirmos literalmente.
Para Bordwell, o que caracteriza um plano planimétrico é o seguinte;
“A câmera está perpendicular a uma superfície de fundo, normalmente uma parede. Os personagens estão postados através do quadro como roupas em um varal. Às vezes, eles estão nos encarando, então a imagem parece com pessoas em uma revista policial. Às vezes as figuras estão de perfil, geralmente porque estão conversando, mas, da mesma forma, podem falar enquanto olham para a frente. Ou as tomadas são registradas bem de perto, ou os personagens são diminuídos pelos entornos. Nos dois casos, esse tipo de enquadramento evita alinhá-los em diagonais regressivas. Quando há um ponto de fuga, ele tende a estar no centro. Se os personagens estão compostos em profundidade, eles tendem a ocupar linha paralelas.”
Além disso, Bordwell constata que esse tipo de enquadramento era raro antes de 1960, exceto nos filmes de Buster Keaton, que trabalhava bastante a geometria dos planos. Antonioni e Godard foram pioneiros no uso frequente dos planos planimétricos, que se tornaram populares a partir dos anos 1970, principalmente pelo uso das lentes longas, que tendem a criar uma imagem achatada, em comparação com as lentes largas. Esse recurso proporciona resultados mais pictóricos.
O uso do planimétrico
Assim, alguns dos cineastas que usam o plano planimétrico em seu estilo, cita Bordwell, são: Hsiao-hsien Hou, fruto de suas filmagens em ruas com lentes longas; Theodoros Angelopoulos, para desdramatização; Rainer Werner Fassbinder para sugerir estase e passividade – em O Machão (Katzelmacher, 1969); Takeshi Kitano no torpor de alguns planos em Adrenalina Máxima (Sonatine, 1993); Terence Davies para criar opressão em Vozes Distantes (Distant Voices, Still Lives, 1988).
Aliás, Kattie Liggera acompanha Bordwell na constatação do planimétrico como um dos recursos habituais do cineasta Wes Anderson. Assim escreveu Liggera em sua análise sobre a série A Misteriosa Sociedade Benedict (The Mysterious Benedict Society, 2021)3:
“Composições planimétricas orientam os personagens especificamente dentro de um ângulo perpendicular à câmera. Perfilar os personagens desta forma acentua as expressões e coloca uma aparência achatada ao plano de fundo. Anderson, frequentemente, emprega essa técnica para apresentar personagens específicos dentro de uma cena, produzindo simetria e, também um hiper-realismo surrealista.”
Por fim, voltando a A Garota e a Aranha, os planos planimétricos reforçam o rigor formal presente em todo o filme. Como escrevemos em nossa crítica (leia aqui), “A intenção parece ser a de ressaltar os relacionamentos conflituosos que as pessoas nutrem (…)”. Ou seja, os personagens parecem forçados a manter as aparências de harmonia, e o planimétrico enclausura-os nessa obrigação social. Se soltas, tanto a câmera como os próprios personagens estariam livres para mostrarem o que realmente sentem.
Foto: O Formidável (Le Redoutable, 2017, de Michel Hazanavicius)
1 https://www.filmcomment.com/blog/the-girl-and-the-spider-zurcher/
2 http://www.davidbordwell.net/blog/2007/01/16/shot-consciousness/