Foi o próprio cinema americano que pretendeu nos convencer de que sem uma alma gêmea não somos nada. A ideia pode evoluir para abarcar toda a diversidade sexual que Hollywood costuma sub-representar, mas é sempre a necessidade de se ter alguém para chamar de meu bem que vale para aqueles que não são considerados filmes de gênero, principalmente nas comédias românticas.
E na verdade, é quase sempre melhor estar sozinho do que se unir a alguém por obrigação, normalmente para cumprir os rumos que a sociedade, sobretudo a sociedade patriarcal capitalista (alô, Valentine’s Day!), quer nos impor.
Querida Alice
Querida Alice (Alice, Darling, 2022) não é uma comédia romântica. Longe disso. Está em questão justamente um relacionamento que não devia ter começado. Anna Kendrick é Alice, moça que vive um desses relacionamentos que só atravancam a vida. Ela não percebe, ou não quer perceber, mas sozinha estaria mais feliz do que com Simon (Charlie Carrick), artista plástico que serve como exemplo perfeito do macho tóxico.
Quando viaja com duas amigas para uma casa no campo, era para ser curtição das boas, livre de um relacionamento opressivo com um homem nojento. Mas ela se sente culpada. Acha que o homem não é nojento, ela é que o trata inadequadamente.
Suas amigas tentam fazê-la ver o óbvio. Sophie (Wunmi Mosaku) é mais discreta. Procura entender Alice do jeito que ela é no momento. Tess (Kaniehtiio Horn) é mais incisiva, e por isso, mais amiga. Confronta as inseguranças de Alice tentando mostrar que ela está errada, que sua visão das coisas é rasa. Nenhuma das duas amigas é bem-sucedida inicialmente. Alice se afunda.
Paralelamente, ela se envolve na busca por uma garota desaparecida. Encontra com isso um motivo para estar ali, distante de seu namorado. Essa subtrama enfraquece um pouco o filme, que é sempre melhor enquanto as amigas se divertem ou mesmo discutem.
Em um momento em que elas se divertem, Alice reclama que Simon não a deixa comer, que se não se cuidar, ela pode ficar gorda. Essa fala deixa as amigas visivelmente ofendidas, embora elas nada comentem. Uma delas, Sophie, tem sobrepeso. Tess, por sua vez, não tem o corpo magro de Alice, o que pode gerar algum incômodo na idade em que elas estão (perto dos 30, pelo que parece). Penso que o fato de elas se incomodarem, como personagens, e o filme mostrar isso é pior, no sentido de ser mais gordofóbico do que a fala inocente de Alice. Por que falar em engordar seria tabu entre grandes amigas? O medo do politicamente incorreto pode gerar muitos equívocos eventualmente.
Em dado momento, Simon vai até a casa onde elas estão. O ator, Charlie Carrick, é ótimo, pois seu personagem é tão insuportável que desejamos que o filme se revele de horror para ele se tornar a primeira vítima e nos deixar logo em paz, saindo da vida de Alice.
Mas é aí que o filme se encaminha para uma eficiente demonstração prática do “não é não”, e o que poderia ser bisonhamente panfletário se transforma, pelas interpretações das três atrizes e do ator, num jogo dos mais interessantes de manipulação sexual.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
___________________________________________
Ficha técnica:
Querida Alice | Alice, Darling | 2022 | 89 min | Canadá, Reino Unido | Direção: Mary Nighy | Roteiro: Alanna Francis | Elenco: Anna Kendrick, Kaniehtiio Horn, Charlie Carrick, Wunmi Mosaku, Mark Winnick, Daniel Stolfi, Carolyn Fe, Gordon Harper.