Dez anos separam Além das Montanhas (Dupa Dealuri, 2012), elogiado (também por mim) longa de Cristian Mungiu sobre suspeita de possessão demoníaca ligada ao desejo sexual, deste R.M.N. (2022), que volta a uma região montanhosa romena, desta vez, a Transilvânia. Entre eles, somente um filme, menos vistoso, mas não desprezível: Graduation (Bacalaureat, 2016).
Com média de dois longas por década, desde o seu primeiro, Occident (2002), tendo se tornado famoso com o premiado segundo longa, 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias (2007), Palma de Ouro em Cannes, Mungiu chega a seu quinto longa – tirando participações em filmes de episódios – firmando-se como um dos nomes mais importantes do cinema romeno contemporâneo.
Menos explosivo do que Radu Jude, o mais celebrado diretor romeno dos últimos anos, e talvez por isso menos falado, Mungiu, no entanto, tem longas que me parecem mais conscientes do que se quer representar, com um olhar mais certeiro para as mazelas do mundo.
A sinopse de R.M.N. é difícil de ser definida. Talvez, por isso, a que consta, em português, no site IMDb pareça um trecho de crítica escrito pelo Chat GPT. Vamos a ela: “Uma análise sem julgamento das forças motrizes do comportamento humano face ao desconhecido, da forma como percebemos o outro e de como nos relacionamos com um futuro incerto.”
Tudo bem que todos os críticos estejam sujeitos a escrever coisas assim, que parecem saídas do Chat GPT. Mas é curioso ver esse recorte como sinopse oficialesca de um filme. É, ao mesmo tempo, uma bela banana para as sinopses que os leitores exigem que constem nas críticas, especialmente em veículos grandes. Sobre o que é o filme? Bem, sobre isso que diz nessa sinopse. Ok, então podemos passar para o que é mais importante. Como é o filme?
A austeridade formal, ligada à análise crítica, reflete a frieza da região montanhosa, como em Além das Montanhas, embora Mungiu mantenha a câmera na mão do operador em muitos momentos do filme. Os cortes secos refletem a crueza dos relacionamentos pessoais, como em 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias. E que tal entendermos o “futuro incerto” como uma referência ao longa anterior, que fala em exames finais para se graduar, ou seja, tornar-se adulto, em um mundo cheio de intolerância e violência? Terá sido, para encerrarmos com o assunto da sinopse, um modo de Mungiu clamar para si o status de autor?
Mas além de tudo isso, R.M.N. traduz, principalmente, um espanto pelo que tem acontecido no mundo, pela intolerância contra imigrantes, principalmente na Europa (romenos sofrendo preconceito em países vizinhos e demonstrando preconceito por outras etnias).
Atravessamos, e o filme parece consciente disso, o último (ou um dos últimos) estágio(s) de um capitalismo devorador, que transforma as pessoas em monstros ou robôs, quando não em vítimas, e sentimos medo pelo que pode vir depois desse estágio. Haveria algo pior ainda dentro do capitalismo? Tudo indica que sim. Um apocalipse social como o de Terra dos Mortos (Land of the Dead, 2005), de George A. Romero?
Mungiu nos mostra: um homem estúpido, que logo na primeira cena já agride um outro e foge da Hungria, onde trabalhava, cruzando a fronteira de volta para a Romênia; uma mulher acuada que recebe esse homem de volta porque, afinal, são casados; e o filho deles, que tem medo de ir para a escola sozinho porque precisa atravessar um bosque onde habitam homens estranhos. Também nos mostra o preconceito racial e a intolerância contra estrangeiros na pequena comunidade quando uma fábrica de pães contrata trabalhadores do Sri Lanka.
Há outros tipos de preconceito, como o nosso. Apesar da estupidez, esse pai desenvolve com o menino uma inesperada relação, que nos parece sincera, embora para isso precise quase anular a educação dada pela mãe, do mesmo modo que o protagonista de Herança da Carne (Home from the Hill, 1960), de Vincente Minnelli, deseja fazer com seu filho, então um adolescente, ensinando-o a caçar, entre outros comportamentos de macho tóxico.
Curiosamente, a mãe havia ensinado o pequeno filho de oito anos a fazer crochê, como um outro adolescente minnelliano, o estudante de Chá e Simpatia (Tea and Sympathy, 1956). Talvez inconscientemente, Mungiu faz uma baita homenagem a Minnelli, grande cineasta na representação do preconceito e da intolerância.
Várias línguas são faladas em R.M.N., o que o liga a outro filme romeno recente, Malmkrog (2020), de Cristi Puiu. Liga a outros romenos também, mas é com o filme de Puiu que o parentesco parece maior. Ambos têm vários países como produtores, no que reflete ao mesmo tempo a precariedade do cinema romeno e seu prestígio, pois suas produções atraem dinheiro de países europeus mais ricos.
Além disso, há uma situação explicitada por um personagem no novo filme. A Romênia sempre esteve cercada de impérios e resistiu por dois mil anos. Ou seja, muito menos um filme europeu do que um filme que reforça a posição romena na Europa.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
R.M.N. | 2022 | 125 min | Romênia, França, Bélgica, Suécia | Direção e roteiro: Cristian Mungiu | Elenco: Marin Grigore, Judith State, Macrina Barladeanu, Orsolya Moldován, Rácz Endre.