Raia 4 mergulha nas profundezas da frieza desconcertante de uma adolescente introspectiva.
Aos doze anos, Amanda treina natação para competições. Na piscina, ela encontra também seu refúgio preferido, principalmente quando fica submersa sozinha após todos saírem. Muito introvertida, ela não se diverte com a turma, apesar de participar das brincadeiras de adolescentes. De fato, isso fica evidente na viagem que fazem para um campeonato fora da cidade. Mesmo assim, se aproxima da colega Priscila, que lhe faz um gesto de afeto ao lhe emprestar absorventes após sua primeira menstruação.
Os pais de Amanda são médicos muito ocupados, e não lhe dão a atenção que ela queria. Em muitas ocasiões, vemos a menina tentando falar algo para o pai, mas este não pode ouvir por compromissos do trabalho. A mãe está mais presente, porém, não o suficiente para criar uma intimidade, tanto que Amanda não conta para ela sobre o seu primeiro período. Aliás, isso fica simbolizado quando, no retorno da viagem para o torneio, a mãe e a filha estão no carro, mas filmadas em quadros diferentes.
Assim, decorrem os primeiros dois terços de Raia 4, que acompanham essa protagonista que se mantém distante das pessoas, inclusive do espectador. Dessa forma, se torna uma figura fria, que não desperta a empatia. Nesse sentido, os vários trechos que mostram Amanda submersa dentro da água, filmadas sob diversos ângulos, se alinham com sua personalidade. De fato, fica evidente que lá dentro, no silêncio e longe de todos, ela encontra a sua paz. Até então, nada indica o desfecho surpreendente que está por vir.
Indícios de terror
Já na parte final, vemos uma inesperada cena de terror em Raia 4. Trata-se de uma inserção tão surpreendente quanto aquela equivalente em O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho – nos dois filmes, com sua apropriada intenção. Na verdade, a câmera se movimenta vagarosamente e revela, sem cortes nesse movimento, que estamos vendo uma cena de um filme exibida no cinema. Então, o giro repousa em Amanda, que foi sozinha assistir ao filme. Posteriormente, descobriremos a intenção dessa sequência.
Raia 4 privilegia o ponto de vista de Amanda. Então, percebemos alguns indícios da atitude da protagonista na conclusão. Antes de tudo, a percepção que ela tem das pessoas pode ser angustiante. Primeiro, os pais que parecem não a amar. Segundo, a empregada doméstica que trai a confiança dela contando à mãe o segredo da menstruação. Por fim, o namorado de Priscila, ao lhe dar um beijo, reforça essa ideia de traição. Já os indícios de sua confusão mental, começam com aquela cena de terror no cinema, que mostra a solitária Amanda apreciando um filme desse gênero. Depois, quando ela deliberadamente machuca a sua prima, ao lhe fazer um penteado.
Desfecho desconcertante
Mesmo assim, nada nos prepara para o desconcertante desfecho de Raia 4. Como a trilha sonora mantém o tom de serenidade daqueles momentos de imersão na água, não assistimos ao crime como se fosse um filme de terror. Por isso, ele se torna ainda mais impactante, em especial pela frieza de Amanda, que, tal qual um psicopata, não reconhece o significado de seu ato. Ao espectador, resta apenas assistir perplexo, torcendo para que Amanda perceba o que faz, antes que seja tarde demais. E, se há alguma motivação, talvez a origem seja o fato de a colega invadir o seu momento especial de paz solitária. Não importa, o que fica é esse retrato de um frio assassinato, talvez o primeiro de uma série.
A direção
Raia 4 venceu três prêmios no Festival de Gramado, o melhor longa-metragem pelo Júri da Crítica, melhor longa gaúcho, e melhor fotografia. Aliás, o diretor de fotografia Edu Rabin realiza um excepcional trabalho na captação das cenas na piscina, sejam nos momentos de imersão da protagonista, ou nas competições e nos treinos. Em sua estreia em longas, o diretor e roteirista Emiliano Cunha comenta sobre esse aspecto:
“Apesar das dificuldades, todos ficávamos muito empolgados a cada novo plano difícil. Portanto, aprendemos e nos divertimos muito no processo. As cenas com a equipe de treinamento também eram mais complicadas, pois juntava elenco grande, composto por jovens cheios de energia e muito curiosos com o processo como um todo, mais as limitações e cuidados que a água exige. Apesar disso, o elenco era muito disciplinado e foi muito dedicado durante todo o processo. E a equipe técnica foi absolutamente parceira diante dos desafios.”
Para o elenco, Emiliano Cunha escolheu, para o papel das adolescentes Amanda e Priscila, duas jovens atletas estreantes na tela: Brídia Moni e Kethelen Guadagnini. “Sabia, desde o início do projeto, que queria trabalhar com nadadores de verdade. Seria muito difícil transformar uma atriz-mirim em uma nadadora com toda a performance física que a natação competitiva exige, pois não é uma questão de atuação, mas de comportamento e fisicalidade que é quase impossível emular”, explica o diretor.
Por outro lado, a natação faz parte da criação do cineasta, conforme ele explica:
“Queria brincar com gêneros cinematográficos, transitar entre um realismo mais cru e as infinidades do mundo onírico. O universo da natação competitiva, então, mostrou-se ideal para este mergulho. Trata-se de um esporte que faz parte de mim, cresci nele e ainda o pratico. Os ritmos, os personagens, os espaços e suas especificidades estão muito vivos em mim”.
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Ficha técnica:
Raia 4 (2019) Brasil. 92 min. Direção e roteiro: Emiliano Cunha. Elenco: Brídia Moni, Kethelen Guadagnini, Arlete Cunha, Fernanda Carvalho Leite, José Henrique Ligabue, Fernanda Chicolet e Rafael Sieg. Distribuição: Boulevard Filmes.